Funchal: Homilia de D. Nuno Brás na celebração da Paixão do Senhor

No fim, a oração

Uma coisa é certa: Jesus morreu a rezar. Que o Cristo tenha morrido na cruz é de tal modo escandaloso que ninguém ousa pôr em causa a sua realidade histórica: Jesus morreu, condenado, numa cruz. Mas o escândalo ainda se torna maior se considerarmos que Ele morreu a rezar. E, nisso, os relatos evangélicos são, igualmente, concordes.

  1. Não é indiferente o modo como Jesus morreu na cruz. Seria aceitável se tivesse sido crucificado como um revolucionário, revoltado contra os poderes humanos opressores. Não causaria escândalo. Faz sentido que um revolucionário morra de morte violenta, e dê origem a um movimento de libertação…

Se assim fosse, Jesus teria sido apenas um entre tantos outros. Jesus poderia até constituir uma inspiração para os seus seguidores, e ter ficado com o nome nos livros de história. Mas não seria o Salvador. Poderia ser capaz de inspirar alguns, mas não de salvar. Não seria nunca o Salvador da humanidade de todos os tempos.

Ou, então, Jesus poderia ter morrido conformado com o seu destino, resignado com a sua condenação à morte. Também isso não causaria escândalo. É certo que deixaria de fazer sentido tudo quanto tinha realizado antes: as palavras, os gestos libertadores, as curas, os milagres… Seriam sons passageiros, gestos quando muito inspirados para o momento, sonhos sem qualquer realidade.

Se assim fosse, Jesus seria apenas mais um conformista, um mestre  do “sempre foi assim e não pode ser doutro modo”. Ter-nos ia mostrado que o ser humano se deve resignar à inevitável pena de morte que pesa sobre todos desde o nascimento. Justificaria a procura de imortalidade em tantas outras realidades — nos astros, nos deuses pagãos, nas energias ou nas capacidades técnicas e científicas do ser humano… E seria justificada a acusação feita por vezes aos cristãos de mais não fazerem que tornar os servos dóceis à exploração, conformados com o destino da sua vida.

Se fosse um resignado, Jesus não seria o Salvador, não seria Aquele em quem podemos colocar toda a nossa esperança, Aquele onde reside toda a nossa glória, Aquele de quem o pobre e o pecador podem esperar um futuro novo. Estaríamos condenados à resignação de ter a morte como palavra final da vida.

Jesus poderia ainda ter morrido revoltado com Deus. Também isso não faria escândalo. Sim, aquele Pai com quem Ele falava no quotidiano, Aquele Deus da Aliança de quem se dizia que tinha salvo o povo das mãos dos egípcios, parecia agora calar, indiferente à sorte dos seus. Sim, Jesus poderia ter denunciado o abandono por parte de todos e, sobretudo, de Deus — esse clamor que sobe tantas vezes da terra, gritos diante da morte e do sofrimento inocente. Jesus poderia ter morrido revoltado com Deus, como tantos, infelizmente morrem.

Teria, quando muito, sido um filósofo angustiado, a blasfemar contra Deus.  Poderia, apenas, ter indicado que Deus nada nos tem a dizer, e que nos encontramos condenados a viver procurando no mundo e na história, nas nossas capacidades técnicas ou éticas, o sentido para o viver e para o morrer, a libertação dos nossos males — mas  diria que, no final, não vale a pena esperar em Deus… Não seria o Salvador!

  1. Mas não. Jesus não morreu nem como líder de uma revolução política, nem como resignado, nem como ateu blasfemo. Jesus morreu a rezar. Morreu como Filho. No último e definitivo momento da sua existência, quis, uma vez mais, rezar, falar com o Pai. Dirigiu-lhe um grito de abandono (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”), mas falou com o Pai, entregando-Lhe o seu Espírito: “Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito”.

Longe de ser o herói, condutor de revoltados contra o sistema; longe de ser um resignado com os males da vida e da sociedade; longe de ser o homem ateu que abandona a fé no momento final porque desesperado com Deus que não o liberta como esperava… longe de tudo isso, Jesus quis morrer a rezar. E, por isso, é o Salvador. A salvação de todos. E, por isso, nos mostra como viver e como morrer.

Naquele grito final, Jesus fez seus o sofrimento de todo o ser humano de todos os tempos. Sim, ali, naquele grito de Jesus, encontram-se as guerras, as explorações, as injustiças, os sofrimentos, o mal infligido à humanidade de todos os tempos. Ali se encontra o grito da humanidade de hoje: o grito das guerras, de Gaza à Ucrânia e a tantas outras partes deste nosso mundo. Ali se encontra o sofrimento daqueles que deixam a sua terra à procura duma vida mais humana. Ali se encontra o grito dos injustiçados do nosso tempo. Ali se encontra até o grito da criação violentada… Como é enorme, intenso, dramático, pesado, aquele grito de Jesus, que, desde aquele lugar onde a tradição judaica tinha colocado o túmulo de Adão, se ergue até ao mais alto dos Céus, até Deus.

“Este é o Meu Filho muito amado; escutai-O” — assim o Pai tinha ordenado aos discípulos dias antes. Mas, agora, eis que, na Cruz, a voz do Filho se ergue como voz do Homem, voz de toda a humanidade em direção ao Pai. E o Pai não iria escutá-la?

Jesus viveu a rezar e morreu a rezar. No final, uma vez mais, Deus: Deus que partilha, que faz seus os nossos sofrimentos e a nossa morte. No final, Deus que acende, por entre o mais dramático do humano, uma luz de sentido: não nos salvamos a nós mesmos, mas somos salvos por Deus em Jesus; não nos salvamos a nós mesmos mas, unidos a Jesus que fez seu o nosso sofrimento e a nossa morte, podemos fazer nossa a sua vida eterna.

No final, como no início, Deus, a oração — no final, como no início e no decorrer da nossa vida. Que graça maior que a graça da oração? A graça de vivermos unidos Àquele que é o sentido de tudo, do viver e do morrer, do sofrer e do rir, da esperança, do sonho e da vitória?

Com Jesus, no viver e no morrer, a oração. Deus e o ser humano na sua verdade total.

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