Fará sentido o celibato ainda ser obrigatório?

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real 

A sexualidade é um dos maiores e belos dons com que Deus agraciou a pessoa humana. Sexualidade que também compreende a genitalidade, o ato sexual físico em si, mas não se reduz a esta. Diga-se desde já, portanto, que o sexo é bom e é uma bênção para a pessoa humana e para a espécie humana. É uma das mais belas dádivas de Deus à pessoa humana, como já afirmou o Papa Francisco. “Deus viu tudo que tinha feito e era tudo muito bom”. Mas como tudo na vida, é preciso ordenar e educar a sexualidade, vivê-la de forma verdadeiramente humana e livre.

Na sociedade em que vivemos, encontramos duas posições antagónicas e distorcidas sobre a sexualidade, com profundas raízes históricas: por um lado, ainda vemos perdurar uma visão negativa e amaldiçoada da sexualidade, porque tudo o que está no corpo e vem do corpo é mau. Ainda são resquícios, por exemplo, do Maniqueísmo e do Jansenismo na história da Igreja, do dualismo como olhavam a vida e o ser humano: se existe o bem e o mal, o espírito é bom, o corpo é mau. A sexualidade é assim uma dimensão pecaminosa, infeliz e vergonhosa do ser humano, a ser suportada, mas escondida e desprezada. Até se chegou a acreditar que o pecado original seria o ato sexual. Esta não é a visão cristã da sexualidade e é até ofensiva contra Deus. Mas esta visão da sexualidade prevaleceu durante séculos, até décadas atrás, e a Igreja não está isenta de culpas por se ter lançado uma certa suspeição e maldição sobre a sexualidade humana. O monge Javier Melloni afirmava, aqui há uns tempos, no Expresso: “A sexualidade é uma das energias da vida, é por onde nos vem a vida, mas tem tanta força que não sabemos o que fazer. Ao temê-la, reprimimo-la, e ao reprimirmo-nos torna-se uma obsessão.” Por outro lado, temos uma visão oposta: o corpo e todos os seus desejos são bons, todos os prazeres corpóreos são bons, por isso não deve haver nenhum entrave nem nenhum limite à sua satisfação, um pouco na linha de correntes históricas como o Hedonismo e o Epicurismo. Foi esta visão que se impôs nas nossas sociedades ocidentais ultimamente, impulsionada pela revolução sexual dos anos sessenta, em que se exigiu liberdade total para a sexualidade. Tudo pelo prazer, nada contra o prazer. Este modo de ver a sexualidade (mais concretamente a genitalidade) tem levado a grande desumanização e escravização sexual, e a formas caóticas e perturbantes de se viver a sexualidade.

Pergunto-me se não exagerámos na liberdade sexual e se não temos de a repensar. Temos um “problema sexual” nas sociedades atuais. Pedofilia, assédio, violações, visualização de pornografia a níveis nunca vistos. A família passa por grande instabilidade, com grande repercussão nas relações entre os seus membros, na educação dos filhos e na sociedade. A ditadura do prazer tem promovido a imaturidade e diluído o casamento e a capacidade de entrega e compromisso, fundamental nas relações humanas. O consumo de pornografia está a atingir níveis nunca vistos, com uma grande legião de dependentes ao seu serviço. Segundo relatos médicos, todos os dias, jovens entram pelos consultórios com impotência sexual e manifestam incapacidade de viver um namoro saudável. A masculinidade começa a manifestar sintomas de crise. Todos os dias podemos constatar como estamos perante uma sociedade viciada em erotismo e sexo, coadjuvada por um bom número de drogas que foram desenvolvidas para a alta performance sexual, mas que nos permite concluir que estamos perante uma escravatura ou uma sujeição exagerada à sexualidade, limitadora da liberdade humana e de uma vida sexual sã. E não esquecendo o grande número de mulheres forçadas a alimentar esta voracidade sexual.

Ambas as visões são excessivas, estão deformadas e são incorretas, e não são cristãs. Qual é então o caminho que a Igreja propõe para uma reta, saudável e humana forma de se viver a sexualidade? A virtude da castidade. Esta passa em primeiro lugar nem por demonizar o sexo, mas também por não adorá-lo e fazer do prazer sexual o fim último do sexo, instrumentalizando-se o outro ou outra. Viver a castidade é viver o desejo sexual de forma controlada, com moderação e equilíbrio, colocando-se a sexualidade ao serviço da vida e do amor. Não é uma virtude negativa, nem desmancha prazeres, mas é humanizadora e libertadora. Não defendo a regressão aos tempos do conservadorismo, mas também não me parece que seja bom uma sexualidade descontrolada, libidinosa, deseducada, sem valores, fonte de escravidão e desumanidade, como se vê viver nos tempos atuais. E já é tempo de a Igreja apresentar uma nova proposta de moral sexual, de a olhar de forma descomplexada e positiva, no que ela tem de prazer, belo e amoroso, e não lhe atribuir uma maldição e toda a espécie de pecado, reprimida com proibições.

Atualmente, o saber e o discurso das ciências humanas e ciências médicas é claro:  a sexualidade é importante para a saúde psicológica, psíquica, física e espiritual da pessoa humana. O exercício da sexualidade traz inúmeros benefícios para o equilíbrio e o bem-estar integral do ser humano. A sexualidade é uma das dimensões importantes da pessoa humana, com grande importância na realização da sua humanidade. Daí que seja da mais elementar importância que se lance o debate sobre o celibato obrigatório dentro da Igreja. O Sínodo que decorre em Roma, pelos vistos, vai abordar o assunto e é bom que o faça sem medos ou complexos, enfrentando a realidade e servindo-se da verdade que sabe.

O celibato não se reduz à sexualidade, bem o sabemos. A sua razão de ser é mais profunda, mas também não apaga a sexualidade. Como disse em tempo D. José Policarpo, num simpósio em Fátima: “Na mentalidade contemporânea, não é tanto o celibato que choca, mas a continência no celibato”. Choca o facto de a igreja desvalorizar a sexualidade e achar que se pode prescindir facilmente dela, quando as ciências médicas e a própria experiência humana nos dizem que não.

Na Escritura não temos nenhum texto que possa servir de fundamento à regra do celibato e Jesus não o exigiu, nem deixou indicações para a sua prática dentro da Igreja. Segundo alguns estudiosos, já existiria na era apostólica a ligação sacerdócio e celibato, mas com difícil observância em alguns períodos da história da Igreja. A regra terá ganho forma mais sólida pelo século XII, pelas muitas razões que podemos averiguar, e foi plenamente consagrada com o Concílio de Trento e o nascimento dos seminários, até hoje.

O celibato é um grande dom à Igreja, ter homens e mulheres totalmente consagrados a Deus e à Igreja é uma riqueza eclesial, mas terá mais razão de ser se for uma escolha pessoal e uma vocação própria. Estarão todos os ministros ordenados vocacionados para o celibato? E não haverá cristãos casados vocacionados para o sacerdócio? Deixar as pessoas escolher a vida celibatária seria muito mais humano, porque de certeza que há ministros ordenados que gostariam de conciliar o sacerdócio e a vida familiar. É assim tão anticristão e tão antievangélico? É tempo de a Igreja se questionar a si mesma se fará sentido continuar a exigir o celibato aos seus ministros ordenados, ou se prefere continuar a manter uma regra, que aos olhos das ciências e da contemporaneidade é considerada retrógrada e contranatura. Se a Igreja tanto quer e defende a vida em abundância para todas as pessoas, convém lembrar que a sexualidade também faz parte da vida em abundância.

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