«Empresas não estão do lado do problema, estão do lado da solução» – Rita Sacramento Monteiro

Durante três dias, jovens de 120 países reuniram-se online para o encontro mundial ‘A Economia de Francisco’. Jovens economistas, empresários e empresárias, professores, prémios Nobel responderam ao convite do Papa para projetar uma nova economia, que “faz viver e não mata”, uma economia inclusiva, que pensa nas pessoas e na ‘’casa comum’.

Rita Sacramento Monteiro, do grupo da ‘Economia de Francisco – Portugal’, fala sobre a experiência de meses na preparação do evento e aponto ao futuro, com “uma rede que continua a trabalhar o tema, a fazer ponte com outras organizações e a lançar pistas”.

Entrevista conduzida por Graça Franco (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Este encontro começou a ser pensado como um evento internacional de três dias, um grande evento, na Igreja Católica estamos acostumados a fazer grandes eventos, mas a pandemia obrigou a uma transformação e faz com que isto seja hoje algo mais. É hoje um movimento global, profissionais, investigadores, empreendedores, estudantes. Esta ‘Economia de Francisco’ é uma proposta do Papa que mobilizou jovens de 120 países, incluindo jovens portugueses, entre os quais a Rita. Como é que se recebe este desafio do Papa para que sejam os mais novos a promover um compromisso global por uma economia mais humana e um futuro mais sustentável?

Recebi este convite com muito entusiasmo e o que senti quando ouvi falar pela primeira vez da ‘Economia de Francisco’ foi que estava perante uma novidade, algo que trazia oxigénio, que trazia um horizonte mais largo, que trazia esperança e que contrastava com alguns discursos habituais ou viciados ou pouco estimulantes ou até já tão complicados que não sabemos bem como entrar neles e como contribuir. Foi isso que senti quando ouvi falar pela primeira vez da ‘Economia de Francisco’. Acho que todos aqueles que se sentiram atraídos por este evento, sentiram-se atraídos por que têm vontade de fazer parte desta transformação do mundo.

 

Estudou na Universidade Católica, há quatro anos que é a responsável máxima dos projetos de voluntariado e responsabilidade social de uma grande empresa portuguesa. Este é encontro que mistura gerações, ou seja, para jovens e de jovens, há uma espécie de tutoria dos mais velhos, dos que já são premio Nobel e também dão o seu contributo. A Rita estava ligada também a outro movimento que é o ‘iMissio’, no fundo, um grande movimento que visa mudar através da digitalização a sociedade e da evangelização através da sociedade. É bom participarem todos digitalmente os 120 países com aquela maratona de 24h00, a entrarem todos sequencialmente?

Eu acho que é incrível conseguirmos participar todos digitalmente e ter-se conseguido que este evento se organizasse e nos preparássemos digitalmente. A pandemia por um lado reforçou a urgência de olharmos para estes temas, de olharmos para uma economia que tem de ser necessariamente mais humana, que tem que colocar outras perguntas para serem possíveis outros caminhos e a pandemia também acentuou alguns temas que já estavam como que identificados, tornou-os mais prementes.

O contexto, ainda que difícil, porque a pandemia trouxe muitas dificuldades, estamos agora a viver uma crise social, continuaremos em fase de emergência social durante muito tempo, mas trouxe uma grande oportunidade. E essa oportunidade já vinha de trás, do discurso que todos ouvíamos falar que o mundo precisava de mudar, o discurso das alterações climáticas.

Com o desafio do Papa a tónica vem ser posta exatamente “isto não é só uma crise ambiental”, “isto não é só um tema destes ou daqueles ou dos economistas ou dos ambientalistas ou dos ativistas”. Isto é um tema de todos, é sobretudo uma crise socio ambiental.

 

No futuro, o que é que prevê que possa decorrer de algumas destas aldeias globais que foram formadas para trabalhar vários temas? Qual é que foi o tema que escolheu e sobretudo houve dois temas que me geraram alguma perplexidade, ‘economia é mulher’ e ‘lucro e vocação’. Quer explorar estes temas?

Eu escolhi o tema ‘Trabalho e cuidado’ e fiz parte desta aldeia que esteve a olhar por um lado o sagrado que é o trabalho e a importância do trabalho para a dignidade humana. Depois também a olhar para todos os temas críticos desde o desemprego, às novas tecnologias, às novas formas de trabalhar. E, essencialmente, o que mais me atraiu neste tema foi o olharmos para o cuidar como exercício que devemos fazer quando pensamos no trabalho, como é que se cuida através do nosso trabalho e depois todas as profissões ligadas ao cuidar e que, aliás, na pandemia tornaram-se criticas as profissões do cuidado. De repente deu-se um olhar aos cuidadores formais que se calhar não se dava tanta atenção antes e percebemos que eles são essenciais.

Estes dois temas – ‘economia é mulher’ e ‘lucro e vocação’ – e o que é que podemos esperar do futuro também não sei bem o que é que vamos encontrar nestes três dias do evento, estou muito entusiasmada e curiosa, mas acho que é sobretudo o marco de uma caminho e o princípio de muita coisa.

Conseguimos uma rede internacional de colaboração de jovens que, se calhar já não são tão jovens ou vão passar a barra dos 35, ou até são mais jovens do que é dito da faixa etária para a ‘Economia de Francisco’. Ganhou-se uma rede de colaboração, de pistas, ganhou-se canal para chegarem a Portugal, por exemplo, textos e trabalhos que estão a ser feitos noutras frentes e convém que cheguem cá para pensarmos neles.

Depois em termos de futuro, para Portugal, e por isso constituímos este grupo da ‘Economia de Francisco – Portugal’, porque sentimos que isto não pode parar aqui. Já há muitos organismos, felizmente, em Portugal, muitas redes, a Rede Cuidar da Casa Comum, tantos movimentos que estão a trabalhar nestas frentes. Nós não queremos ser mais um, no sentido de criar entropia, ou de grandes formalismos, mas queremos ser uma rede que continua a trabalhar o tema, a fazer ponte com outras organizações e a lançar pistas.

 

Sobre o impacto da pandemia, uma das questões tem a ver com as mudanças no campo laboral. Estamos agora confrontados com uma massificação do teletrabalho, mas não só, o olhar sobre o que o trabalho representa na vida de cada um também vai mudar muito depois do impacto desta pandemia. Isso foi algo que preocupou nos últimos meses de reflexão este grupo?

Sim, muito, falou-se muito desta adaptação ao digital porque de repente as pessoas foram para casa, muitas, as que puderam continuar a trabalhar, e depois muitas viram os seus empregos postos em causa e perderam os seus empregos e, por isso, estão a atravessar uma fase difícil.

O que a ‘Economia de Francisco’ traz, quando as pessoas perguntam se ai sair daqui um modelo, respostas, eu acho que traz perguntas. E traz perguntas novas.

E para este tema do trabalho precisamos de ter mais tempo e mais espaço, em Portugal e também internacionalmente, para pensar com calma e colocar as perguntas certas. Às vezes, o discurso está muito extremado, entre trabalhadores e empregadores, uns contra os outros, uns que querem poder despedir com mais flexibilidade, os outros que querem condições mais dignas e que, às vezes, a tónica é vista de um lado só exigências.

As questões, e este é a grande novidade de pensarmos uma economia à luz de um santo que viveu há 800 anos, é ir à raiz dos temas, como São Francisco fazia, como este Papa tem proposto, e procurar as perguntas certas. O trabalho é essencial para a dignidade humana, não é o nosso absoluto, como também se está a viver nalgumas dimensões, alguns de nós absolutizaram o trabalho.

 

Vê-se nas novas gerações que há uma atenção particular à vida familiar e não quererem sacrificar a sua vida pessoal e familiar ao trabalho e à carreira e à ideia de que o trabalho está acima de tudo…

E ainda assim, não querendo sacrificar, as pessoas veem-se em posições muito difíceis porque depois cada um tem de descobrir onde é que traça o limite. Hoje o sucesso individual e profissional a pressão é tanta, estamos tão sensibilizados, ouvimos tanto falar sobre isto, que depois vivemos com esta pressão e com esta expetativa.

A tónica tem de ser muita mais no sucesso coletivo, a excelência coletiva e não nesta pressão para um sucesso individual que depois me leva a não ter horários para nada, a andar sempre dividido, a viver em tensão com a minha família, com as outras dimensões da minha própria vida. Sem dúvida que esse é um tema.

Em Portugal, e já disse isto noutros fóruns, se perguntássemos aos portugueses como é que se sentem em relação ao trabalho as pessoas diriam que se sentem desgastadas, cansadas e divididas. E há uma investigadora que nos acompanhou neste percurso da ‘Economia de Francisco’ que é defensora de uma nova organização da sociedade. A Jennifer Nedelsky que fala de part-time para todos e 30 horas no máximo de trabalho e 22 horas para cuidar.

Com esta proposta desafiadora e questiona a própria organização da sociedade, o que vem colocar é a atenção na pressão insustentável que está sobre as famílias, no facto de os decisores, muitas vezes, não estarem sensibilizados para o que é que é isto do cuidar das famílias até porque muitas vezes não são eles que diretamente cuidam ou nunca fizeram voluntariado na vida. Falamos nisto muitas vezes nos nossos fóruns de discussão.

 

À atenção do Governo…

Exatamente, precisamos de decisores que estejam mais atentos a esta dimensão do cuidar por que só assim podem tomar melhores decisões e estar atentos a estas dinâmicas de equilíbrio e de uma vida mais feliz.

 

Vocês são capazes, tão precários como estão, de dizer ao patrão: “Desculpe lá mas são horas de eu ir embora?”

Eu acho que somos, e, sobretudo, antes até de dizermos ao patrão cada um de nós tem de olhar para a forma como gere o seu trabalho, e organiza o seu dia. Temos todos grandes ambições, é assim uma geração com muita ambição, muito desejo de entregar, de ter sucesso, e que vai percebendo que isso do ter sucesso depois não é necessariamente o que traz a felicidade, de repente as outras dimensões esta todas desequilibradas.

Se calhar, estou a falar de um grupo de pessoas privilegiadas que pode dizer esse “não” ao patrão. Se pensarmos em todas essas pessoas que não podem dizer que não ao patrão, que têm mais do que um trabalho e acumulam trabalho apar poder pagar as contas, a questão é completamente diferente e temos que ir a quem são esses patrões e lembrá-los da importância do papel que lhes foi confiado de cuidar daquelas pessoas, têm impacto na vida daquelas pessoas e na vida das famílias daquelas pessoas.

 

Há uns anos o António Pinto Leite, quando esteve em frente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, promoveu um encontro cujo tema era ‘o amor como um critério de gestão’. Isto foi uma antecipação deste movimento?

Foi, foi, esse é um dos muitos sinais que houve no passado, nos últimos anos, que antecipam um evento como este. E que é pessoas que surgem de repente com uma linguagem muito simples e que o amor atualmente, a palavra “amor”, padece de alguma banalização, pobre palavra amor… Mas se a dignificarmos e olharmos com olhos de ver, como tem o Papa tentado fazer, percebemos que afinal o António Pinto Leite não estava e não era uma frase poética. Era uma frase profética, porque o avançar da economia e da tecnologia de certa maneira desumanizou-nos em muitas frentes, e hoje temos acesso a muitas coisas, a imensa informação, hoje conseguimos pensar temas e ter acesso a realidades de outros países, mas, em muitas dimensões, estamos mais pobres, estamos mais empobrecidos.

Lembro a Madre Teresa de Calcutá, que dizia que a pobreza que a assustava não era a material, era a dos países ditos desenvolvidos, esta pobreza de relações afetivas, de pensamentos crítico, de um olhar ao outro. Esta frase do “amor como critério de gestão” é sem dúvida a base para a reflexão da economia de Francisco que é olharmos para a economia, que diz das relações de trabalho, das relações com os bens, olharmos para a ecologia integral, que diz das relações entre as pessoas e todos os seres vivos que há na terra e olharmos para isto tudo em conjunto, pensarmos isto em conjunto. De facto, a expressão ‘casa comum’ é a que melhor fala disto tudo e é muito simples para dizer, nos somos pessoas na terra a fazer um caminho, vivemos numa casa que é comum, percebemos que as alterações climáticas e até um vírus no atinge a todos, só vamos conseguir fazer melhor e estarmos todos mais felizes trabalhando em conjunto.

 

Esta visão centrada no amor e no cuidado vai parecer muito utópica. No vosso trabalho há projetos, há modelos implementados com estes critérios que dão dinheiro, que dão lucro?

Há. Ou seja, temos tido acesso a muitas práticas internacionais, até em Portugal, empresas assumidamente cristãs ou independentemente da religião, ou sem assumirem uma confissão religiosa, que incluíram preocupações do cuidado com o ambiente, com as pessoas, com a forma como se contrata, como se paga, como se produz e que estão a dar lucro, grandes multinacionais.

Muitos poderão dizer e estar ainda céticos que ainda é tudo fogo de vista, que é um marketing verde, não o creio. E acho que há um olhar também em relação ao setor privado que é, às vezes, incompleto e injusto até. O setor privado tem feito muito também pela transformação do mundo, possibilitou o apoio a tantos projetos, dá empregos.

As empresas não estão do lado do problema, estão do lado da solução. Há muitas empresas que estão a incorporar estas preocupações de cuidado e que são empresas sustentáveis, rentáveis e a dar lucro.

 

Quando se começou a estudar a felicidade como um critério de gestão, provava-se estatisticamente que 28% do volume de negócios podia aumentar por trabalhador no caso de ele se sentir feliz na empresa e isto levava a que triplicasse o valor para o acionista, no caso de as empresas conseguirem motivar os trabalhadores, a vestirem a camisola da empresa. Estes números foram investigados para convencer os empresários que podiam ganhar se os trabalhadores estivessem felizes, e era do seu próprio interesse que o trabalhador sentisse bem-estar na empresa. Acha que vamos dar o passo em frente, ou seja, para além de os convencer, sensibilizar que independentemente de ganharem mais ou não com isso o valor da felicidade do trabalhador é um valor em si para a sociedade?

Eu espero que sim, porque é isso que é preciso. De outra maneira o que acontece é que esta tendência no mundo empresarial para construir o caso de negócio e apresentar às administrações, e depois as lógicas são sempre, qual é o retorno, qual é o retorno económico, quais são estes números. E, então, podemos dizer: ao menos estes administradores e estes gestores passaram a ocupar-se mais da felicidade dos seus colaboradores, ótimo. De repente essa ocupação leva a que criam muitas medidas para melhorar a sua felicidade no trabalho mas continuam a exigir que eles estejam a 10, 12, 14 horas e lhes colocam uma pressão inimaginável; nas mulheres, por exemplo, que usufruem das licenças, ou os pais que usufruem das licenças de parentalidade, que depois se sentem divididos, que sentem que voltam à empresa e que isso não é bem visto, é quase como que uma interrupção, estamos a dever, estamos a dever à empresa… Se for por esse caminho é um caminho perigoso.

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