Ecumenismo: «Somos o ecumenismo do povo, não somos o ecumenismo dos teólogos» – Luís Parente Martins

Em plena Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o cardiologista Luís Parente Martins, da organização do Encontro Cristão, que decorre a 27 de janeiro, em Sintra, que há 14 anos junta diversas Igrejas e comunidades em oração ecuménica

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Lígia Silveira (Ecclesia)

São 14 edições de Encontro Cristão. Que caminho é que tem sido feito e que novos horizontes importa afirmar conjuntamente?

Penso que isto vale sempre a pena voltar às origens. Nós somos o ecumenismo do povo, não somos o ecumenismo dos teólogos. E, portanto, este ecumenismo e estas relações nasceram de um contexto familiar onde foram caindo muitos preconceitos que existiam entre Igrejas diferentes, onde as nossas famílias pertenciam. Descobrimos que, de facto, o muito importante, aquilo que nos unia, era Jesus Cristo. E, portanto, descobrir este Jesus Cristo, louvar este Jesus Cristo em comum e poder fazer um encontro onde mais cristãos pudessem fazê-lo, foi a iniciativa que lançámos há 14 anos – na altura com um pequeno grupo de pessoas, ainda em Algueirão-Mem Martins.

Progressivamente, temos vindo a aumentar o número das pessoas e a abrangência do encontro. Eu penso que este encontro é muito importante porque envolve não só o Conselho Português das Igrejas Cristãs, a Igreja Católica Romana, a Aliança Evangélica, que é muito pujante, como se sabe, e cada vez mais. E, portanto, há um número enorme de cristãos que vivem nestas comunidades evangélicas e que também já vão participando nesta dinâmica.


«Decidir amar» é o tema do encontro este ano, que, neste contexto atual, não deixa de ser interessante olharmos para ele, uma vez que o Papa fala de uma terceira guerra mundial aos pedaços e muitos utilizam a religião para justificar a guerra. Q
ue atitude podemos e devemos também esperar dos cristãos na defesa da unidade e da construção da paz?

Li há pouco tempo um artigo de uma cristã de Berlim, de Beirute, que viveu exatamente num contexto de guerra onde tudo desmoronava. Faz-me lembrar um bocadinho aquele movimento a que eu estou ligado, o movimento dos Folclores, em que Chiara Lubich (fundadora) viveu num contexto muito semelhante. Mais recentemente, há 15 ou 20 anos, esta nossa irmã, de Beirute, dizia que quando perdia a casa, quando perdia os projetos, quando parecia que tudo desmoronava, só uma coisa fazia sentido – era amar a Deus, que não passa, e amar o próximo de uma forma muito concreta.

E, portanto, nós, e penso que isto é uma das partes belas do encontro, é que há três meses nos juntamos uma pequena comissão ecuménica que vai meditando e que vai partilhando a palavra. E, portanto, esta questão do «Amarás o Senhor teu Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo», eu penso que isto já foi muito digerido com o contributo de cada sensibilidade cristã e, resultou neste título, mais impactante.

No fundo, aquilo que podemos fazer no contexto atual, que é um contexto extremamente difícil, é cada um de nós decidir amar e convidar os outros a decidir amar.


Para além deste tempo da Semana de Oração, pela Unidade dos Cristãos, que relação existe entre as Igrejas?

Existe uma relação de grande fraternidade. Já tivemos durante estes 14 anos, um espaço comum, a chamada plataforma Comunidade, onde acolhemos refugiados durante dois anos de uma forma conjunta. Mas este ano, e já agora para desvendar um bocadinho o que vai ser este encontro, este ano nós queremos, com este «Decidir Amar», por um lado, durante a tarde, fazer uma caminhada pelas ruas de Sintra, onde os jovens vão convidar os turistas e as pessoas que passam, a um desafio, um bocadinho que está fora de moda, de decidir amar e não só usufruir, porque há muito, penso eu, este conceito que enquanto não vem a tal guerra, enquanto não se perde tudo, então vamos desfrutar de tudo, não é?

Mas há outra maneira que para nós nos parece mais retributiva, que é de facto este preocupar-se com o outro, este viver com o outro, e quando nós fazemos esta proposta e a experimentamos, descobrimos que vale a pena este caminho, que este é um caminho válido.

 

Não há, portanto, aqui um risco de se cumprir um ritual de uma semana de oração, que depois não tem sequência?

Não. Aqui este ano, exatamente, nós com o «Decidir Amar» à noite, vamos lançar uma iniciativa que nos parece muito importante. O contexto é a parábola do bom samaritano, e quando estivemos a refletir todos nós, os cristãos, temos esta intenção de ser um bom samaritano, mas este samaritano que de facto olha e vê, este samaritano que se aproxima e não passa para o próximo, não passa de lado, este samaritano que quer cuidar.

Mas isto é muito complicado no nosso dia-a-dia. Eu estou-me a lembrar de uma experiência de um de nós, que todos os dias vinha um arrumador e que lhe dava uma moeda. Mas isto ficamos um bocadinho pela caridadezinha, pela esmolas, enfim, tem pouca consequência.

E portanto, nós este ano vamos lançar e já reunimos onze instituições de uma coisa que se chama o ponto de encontro. O ponto de encontro vai ser na Tapada das Mercês, e vai ser, sobretudo, online, onde nós descobrimos aquelas pessoas que estão com dificuldades na vida, não só no conceito estritamente social, mas no conceito psicológico, pessoas que estão sem sentido de vida, pessoas que perderam o sentido de vida, pessoas que estão com dificuldade em pagar os empréstimos ao banco, pessoas que estão com dificuldades nos relacionamentos entre cônjuges.

Portanto, nós vamos ter uma série de associações que são ‘expert’. E vamos convidar cada um de nós que quer ser bom samaritano, a levar essas pessoas até este ponto de encontro, onde as pomos em contacto com a instituição que melhor pode ajudar naquele problema que eles têm. E depois nós vamos continuar a seguir mensalmente a situação, mas o ponto de encontro é exatamente só um local onde fazemos a junção entre aquele que quer ser bom samaritano, aquele que precisa de ser cuidado, e aquele que são os cuidadores, numa relação que eu acho que vai ser terapêutica para todos. Porque, de facto, não beneficia só aquele que é cuidado, beneficiemos nós, porque passaremos a ser mais aquilo que queremos ser, que é bom samaritano.

Pergunto-lhe, Luís, Parente Martins, começou esta nossa conversa dizendo que são o ecumenismo do povo. Pergunto-lhe se o movimento ecuménico, na realidade, se concretiza mais por estas ações próximas, quase até de relação pessoal, mais até do que a nível institucional.

Nós temos muito esta convicção, que é um bocadinho a convicção que vem um bocadinho da nossa experiência. Eu, para dizer a verdade, fico um bocadinho perplexo, porque quando Jesus Cristo, no Evangelho, diz que todos sejam um para que o mundo creia, e, portanto, faz depender a fé da unidade dos cristãos, esta frase não tem um impacto dentro das Igrejas, das comunidades. Mas tem em algumas minorias. E nós percebemos que, quando passamos da solidariedade a uma fraternidade, quando de facto nos conhecemos, quando de facto percebemos que temos diferenças, mas temos imenso cuidado em procurar aquela frase ou aquela iniciativa onde todos se sentem envolvidos. No fundo, é uma dinâmica sinodal.

 

Mas isso vai acontecendo de facto?

Olha, nós temos sempre três meses de preparação deste encontro, que para nós é muito gratificante, porque é um encontro semanal de encontro das várias comunidades cristãs. E depois, quando lançamos uma destas iniciativas, tentamos mantê-la durante o ano e continuamos a manter relações de amizade, que muitas vezes passam por um jantar com um membro de outra Igreja, de uma visita à casa, às nossas casas. Enfim, é isto que alimenta o relacionamento fraterno e que de facto nos faz acreditar que não existe uma diferença substancial entre a fé do outro e a minha fé.

Que contributo podem os cristãos dar, na construção democrática, na intervenção e até no apelo à participação neste tempo pré-eleitoral que estamos a viver?

No fundo o importante é não desmoralizar, quer dizer, o importante é não desmoralizar e perceber que os cristãos têm como mira a eternidade. E não perder este foco na eternidade que se constrói no dia-a-dia. Eu penso que o contributo que nós podemos com certeza dar é nos empenharmos naquelas situações que estão perto de nós.

E sermos também exigentes para com os partidos, nomeadamente?

Sim, é muito importante perceber quais são os caminhos que cada um dos partidos propõe e como é que propõe de facto um mundo com mais esperança e com mais vida. Saber exatamente nos programas o que é que consta como caminho para chegar a uma meta, porque enfim, a meta é um bocadinho sempre uma meta de uma situação melhor, um mundo melhor, mas os caminhos são importantes e que sejam caminhos realistas.

E eu diria que mesmo para as nossas instituições, e isso é outra coisa que vamos fazer, já o combinámos – as nossas instituições cristãs vão-se encontrar de três em três meses num espaço de comunhão. Porquê? Porque estas boas intenções que todos nós temos sozinhos não conseguimos levar para a frente. E portanto, juntos vamos fazer um encontro trimestral onde partilharemos experiências, faremos um momento de oração, porque as instituições cristãs focam-se muito no social, acabam por ser instituições de solidariedade social, e perdem a dimensão da fraternidade. E é uma perda enorme para a ontologia da própria instituição. De facto, é necessário que cada um vá às raízes e perceba a razão porque está nesta missão.

 

Neste tempo em que a ameaça dos populismos e dos extremismos é crescente, também se exige aos cristãos uma maior participação cívica e política?

Sem dúvida, mas a participação, penso eu, que passa muito pela consciencialização e dinamização das comunidades cristãs de tal forma que cada um saiba dar razões da sua esperança. E ao dar razões da sua esperança, de facto, percebe que não pode haver incongruências. Eu acho que temos a graça de ter o Papa Francisco que orienta exatamente para a inclusão de todos, que orienta no sentido de fazermos este caminho. Eu penso que, quando ele diz que vai no meio do rebanho – uns vão lá mais à frente, outros vão mais cá atrás – ele tenta unir, de facto, estas pessoas. E eu penso que até as comunidades evangélicas valorizam muito este papel.

É muito interessante que, por exemplo, durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023, houve um encontro no Estádio da Luz organizado por organizações evangélicas, onde passou um vídeo do Papa. Quer dizer, o Papa é uma voz que, atualmente, é ouvida por toda a gente, inclusivamente pelos evangélicos.

Precisamente nesse encontro da JMJ o Papa Francisco recebeu na Nunciatura Apostólica diferentes líderes religiosos a quem pediu que a presença das religiões no espaço público continue a assegurar, na sociedade, uma abertura à transcendência, assegure também a dignidade da pessoa humana e o cuidado dos mais frágeis. Eu pergunto-lhe de que forma é que a prática dos cristãos, no seu compromisso político e cívico, tem de passar por aqui?

Eu pessoalmente estou particularmente preocupado com esta abertura à transcendência. Porque, de facto, penso eu, e isto é uma opinião muito pessoal, que nós tivemos aqui um pico com a JMJ, em que, de facto, houve um pico de entusiasmo, mas, de facto, há que dar continuidade à JMJ. E, nesse aspeto, eu penso que a formação de pequenas comunidades, quer dentro da Igreja Católica, e valorizar estas pequenas comunidades que fazem um caminho de discipulado em relação a Jesus Cristo, depois leva um empenho na sociedade.

Quer dizer, não vale de nada haver um misticismo que aflora em muitas circunstâncias, mas que, de facto, depois separa completamente a alma da vida do quotidiano. E isto é uma tendência. Eu penso que hoje em dia, nas alturas de crise, há muito a tendência da polarização. Ou focar-se muito ou no social ou muito no místico. No fundo, são refúgios. E ser capaz de fazer a síntese entre as duas coisas, estar alimentados e alicerçados na raiz, para depois ser a expressão deste amor de Jesus Cristo, concretamente naquele que é o outro. Eu penso que é por aí o caminho.

Pedia o seu olhar agora para este processo de sinodalidade que a Igreja Católica está a viver. Aqui mesmo, na Renascença, o D. Jorge Pina Cabral, da Igreja Lusitana, sublinhou que o processo em curso, se for enriquecedor para a Igreja Católica, naturalmente será também para o movimento ecuménico em geral. Este processo da sinodalidade é também um desafio para as outras Igrejas? 

Eu penso que sim. As Igrejas do COPIC já são Igrejas sinodais. Elas já não decidem o bispo, por si só, não podem tomar decisões sem consultar de facto a sua Igreja. É uma realidade tanto na Igreja Metodista como a Igreja Presbiteriana. E eu penso que esse processo é um processo valioso no sentido em que envolve todos e ajuda todos a caminhar.

Agora, são Igrejas que em termos numéricos não têm uma expressão tão grande. É mais fácil fazer sínodo numa Igreja mais pequena do que numa Igreja maior. Nas Igrejas evangélicas, o que eu tenho visto é que, de facto, também têm o mesmo problema de todos se ouvirem. Penso que é uma questão cultural. Atualmente, a autonomia é um valor que está perfeitamente empolgado, levando-o a uma certa autocracia em que eu só faço aquilo que eu acho. E o sínodo, o escutar o outro, como o Papa Francisco nos propõe, penso que é um desafio grande e é um desafio que temos de desenvolver em cada uma das comunidades e depois nas comunidades em geral.

Recorrendo à sua experiência profissional, como é que vê as atuais dificuldades no Serviço Nacional de Saúde? 

Pois, eu penso que tem muito a ver com esta questão monetária e a questão relacional. Em termos de respostas há uma discrepância enorme entre aquele Serviço Nacional de Saúde que presta auxílio a todos, e em que os médicos e os profissionais de saúde trabalham lá por uma causa.  E, de facto, quando se perde a relação, quando, não há um projeto em conjunto, quando se perde a razão de estar e, do outro lado, o dinheiro é três vezes ou quatro vezes mais, as pessoas perdem este empenho no Serviço Nacional de Saúde.

E, sinceramente, eu confesso, que se tivesse a obrigação de apresentar soluções, infelizmente, não tenho nenhuma maneira de resolver (o problema). Percebo que há enorme falta de recursos e percebo que o caminho, provavelmente, tem a ver com a medicina relacional, ou seja, com o cultivar da relação, de forma que as instituições que agora emergem em grandes quantidades, no fundo são fábricas de produção ou têm este risco de se tornarem fábricas de produção de técnicas e de cuidados de saúde.

Mas, no dia-a-dia, sente que, de facto, há limitações no acesso à saúde, como defendem alguns? 

Eu trabalho no Centro Hospitalar de Lisboa Norte, e nós temos filas enormes tanto para as consultas como para as realizações dos exames complementares diagnósticos. Antes da pandemia, éramos 20, agora somos quatro ou cinco. Portanto, há, de facto, no Hospital Pulido Valente particularmente, um deficit, uma incapacidade da resposta. Agora, há também um empenho e, já agora também lhe posso dizer, que apesar de sermos poucos, criámos há cinco anos, uma dinâmica, que se chama a Unidade Mais Sentido – e é uma coisa inovadora. É a prestação de cuidados, segundo a metodologia dos cuidados paliativos, profundamente relacional, com os doentes cardíacos.

Normalmente as pessoas associam aos cuidados paliativos ao fim de vida, a doença oncológica, e os cardíacos e pessoas com doenças de órgão, também beneficiam imenso de ser cuidados, não só no aspeto técnico, porque nós não somos mecânicos do coração, somos pessoas que tratam pessoas. E nesta relação entre médico e doente, que envolve o cuidador, e em que nada é mérito nosso, é tudo mérito da metodologia dos cuidados paliativos, mas aplicado ao Serviço Nacional de Saúde é muito retribuinte. Apesar das dificuldades, nós vivemos a nossa missão e a nossa profissão com grande entusiasmo, porque percebemos que somos úteis e percebemos que as pessoas nos veem com grande utilidade.

Mas, perante essas filas que descreve, como é que fica a relação médico-paciente?

Tenho a sorte de ter um excelente diretor e arranjamos um método onde, de facto, o nosso problema é não conseguir dar uma resposta muito global, pelo contrário, é uma resposta muito restrita, mas, de facto, nós temos imenso tempo com cada doente, nós podemos ver cada doente numa hora. Exatamente porque aqueles doentes que, além da patologia grave que têm no coração, têm um conjunto de outras comorbidades, e portanto, desde o ponto de vista psicológico ao ponto de vista relacional, à sobrecarga do cuidador, todas estas dimensões são avaliadas e nós temos tempo para isso. E isto é muito bom, em termos de fazer a carreira profissional e de estar no hospital, porque nós vivemos rodeados de gente que está contente com os cuidados que recebe e de gente que está contente com os cuidados que presta.

Deixe-me recorrer, por último, a uma das outras experiências de vida do Luís Parente Martins para lhe perguntar porquê é que estamos a falhar, se é que estamos a falhar, ao nível da rede de cuidados paliativos?

Bom, existem, de facto, duas coisas que me parecem importantes. Por um lado, a pouca formação e, do meu ponto de vista, existe uma afetação cultural. Quer dizer, a um dado momento ainda existem, e era preciso procurar aquelas pessoas que estão nos cuidados paliativos, com esta missão e esta vontade de querer ajudar, mas já começa a haver também interesses económicos. Ou seja, é uma oportunidade de trabalho, é uma oportunidade também de criar rentabilidade e, portanto, a genuidade que eu encontrei quando comecei nos cuidados paliativos de pessoas que eram, de facto, pessoas extraordinárias em termos humanos, hoje em dia pode perder-se.

E isto é também uma das maneiras de voltar à genuidade. É uma questão cultural, portanto, voltar à genuidade e convidar cada um a fazer parte deste processo dos cuidados paliativos de forma a que isso seja compensador em termos humanos, porque é uma relação que se estabelece e nós somos, de facto, seres de relação. Acho que é o caminho para implementar também os cuidados paliativos.

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