É tempo de cuidar

Carla Rodrigues, Arquidiocese de Braga

Os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa são uma realidade. Trágica e dolorosa. Que a todos nos envergonha.

Ao longo de décadas (séculos…) os abusos foram cometidos e a Igreja, como que arrogando-se o papel de principal vitima, lá ia escondendo, temendo o escândalo. Pelo caminho iam ficando pontas soltas, gerando o sentimento de impunidade vivido um inevitável aumento dos abusos. Multiplicavam-se as vítimas, órfãos de qualquer tipo de apoio ou protecção, com infâncias arrancadas sem dó nem piedade, vidas destruídas e gritos silenciados pelo medo, vergonha e sentimento de culpa.

Não é tempo para dourar a pílula ou para arranjar desculpas pelos anos de encobrimento. Nem é tempo para declarações incendiárias ou acusações insensatas e precipitadas como temos lido, muito menos para palcos, como alguns nomes da nossa praça pública parecem perseguir. É tempo (que peca por demora) de trabalhar. De agradecer a coragem das vítimas e fazer caminho no sentido da cura. É tempo de cuidar das pessoas vítimas de abuso sexual (pessoas com rosto, com nome, com histórias de vida…), que anseiam por caminhos seguros que suavizem a dor.

As Comissões Diocesanas para Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, constituídas por decreto do Papa Francisco, são equipas multidisciplinares que de forma independente e sem qualquer voto de obediência a não ser à verdade e à justiça, recebem as denúncias de abusos sexuais, cabendo-lhes acolher, escutar e proteger as vítimas vulneráveis, com as suas histórias dolorosas e feridas emocionais profundas.

Conscientes que não basta uma escuta atenta, que é necessária mas insuficiente, temos de (continuar a) trabalhar com seriedade e empenho, em todas as dioceses, a oferta de apoio psicológico e psiquiátrico, prestado por terceiros, colaborando para a criação de uma bolsa nacional de técnicos, com experiência clínica e com capacidade de resposta rápida, duradoura e eficaz, para que acompanhem e tratem as vítimas, no presente e no futuro, na área da psiquiatria e psicologia, sem descurar o acompanhamento espiritual e o apoio jurídico. Ficando na liberdade da pessoa aceitar ou não o profissional que consta da bolsa. É isto que se impõe: respeitar e cuidar!

E quanto ao agressor? Para além das medidas cautelares e das penas que venham a ser aplicadas, em caso de condenação, há necessidade de um acompanhamento espiritual e uma avaliação psicológica e/ou psiquiátrica, bem como uma intervenção psicoterapêutica, longa e supervisionada, feita por especialistas na área do tratamento do agressor sexual.

Conscientes da urgência e responsabilidade em travar os abusos e o encobrimento (que no passado foi terreno fértil para a perpetuação deste comportamento criminoso), a par da necessidade da sexualidade e saúde mental ser discutida e tratada por técnicos especializados, têm de ser reforçadas, com colaboração das Comissões na sua organização, as iniciativas de prevenção e formação, junto dos seminários, paróquias, instituições e movimentos religiosos, que devem ser de frequência obrigatória, sob pena de não surtir o efeito desejado: a prevenção.

Enquanto pessoas de bem, de olhos postos nas feridas, trabalhemos uma cultura assente nos valores fundamentais da nossa sociedade, mas trabalhemos de forma séria, comprometida e construtiva. Temos a possibilidade, a partir da coragem das vítimas e sem atropelar os princípios que sustentam um estado de direito, de escrever um novo capítulo na história da Igreja. Saibamo-la aproveitar…

Carla Rodrigues, advogada e Coordenadora da Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga – CPMAVAB

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