É no(s) caminho(s) (de cada dia) que o Evangelho acontece!

Padre António Henrique, diocese de Viseu

Depois de ter lido a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano, em que, de certa forma, nos propõe uma vivência quaresmal que inspire o caminho sinodal da Igreja, dei comigo a estudar os Evangelhos de cada um dos domingos e a perscrutar neles algumas atitudes, gestos e palavras de Jesus capazes de nos desafiarem a uma maior profundidade na celebração e na vivência deste tempo.

Na verdade, a Quaresma não se resume a uma mera compreensão cronológica fixada nos 40 dias que vão desde a Quarta-feira de cinzas até à Quinta-feira Santa (missa da ceia excluída). Este período, embora compreendido com as categorias temporais, é acima de tudo uma oportunidade de graça em que o cristão, não “solitariamente, mas de forma compartilhada”, é chamado a (re)colocar-se no Caminho (que é Jesus) e a fazer uma reflexão acerca do modo como tem sido o seu «seguir atrás dos passos do Mestre», caminhando com Ele e com os irmãos cuja existência se cruza com a nossa, quotidianamente. “A Jesus, seguimo-Lo juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo”.

Para essa reflexão, dentro das leituras que a liturgia nos propõe ao longo destes cinco domingos, servem-nos de guia os Evangelhos que, neste ciclo A, seguindo a tradição do itinerário catecumenal, nos apresentam uma proposta marcadamente batismal, que é a raiz do caminho sinodal da Igreja!

Assim, no caminho que nos leva da aridez do deserto ao jardim florido, onde se encontra o túmulo vazio, o Evangelho, em cada um destes domingos, lançando-nos um convite para ser vivido durante a semana, desafia-nos a uma atitude de escuta ativa, a olhar a pessoa de Jesus, os caminhos que percorre, as pessoas com quem se encontra, os gestos que cumpre, as palavras que diz e que escuta, os olhares que se trocam, o tempo que oferece a cada pessoa, os acontecimentos e o (des)envolvimento dos que com Ele caminham, naquele tempo como hoje, neste processo que é o caminho para (a Nova) Jerusalém.

O primeiro domingo abre com as chamadas tentações de Jesus o deserto. Na verdade, a tradução da palavra grega (πειράζω, peiràzo) por tentação, significa, sobretudo, o «ser posto à prova». De modo diverso, cada um de nós é posto à prova diariamente, seja com aquelas três realidades com que o Diabo tenta Jesus, sejam essas mesmas tentações mascaradas de tantas outras realidades mais comuns e percetíveis nos nossos dias. Importa, com uma vida de encontro com o Senhor, aprender a vivê-las e a ultrapassá-las. No caminho da vida, livres e diante das escolhas, aprendamos a escutar o que o Espírito nos diz, Ele que sempre nos sustenta e nos guia.

O texto do segundo domingo (Transfiguração) foi o que serviu de base e inspiração ao Papa Francisco para que escrevesse a mensagem que nos dirigiu este ano, para que possamos viver a Quaresma como um verdadeiro caminho sinodal, ou seja, como uma oportunidade fundamental de escuta e interiorização da Palavra que é Jesus. O texto começa por referir que Jesus “leva consigo”. No centro deste relato ressoa um imperativo fundamental no caminho da Igreja sinodal: “escutai-O”. A quaresma proporciona-nos esta oportunidade para, indo com Jesus, (re)aprendermos a praticar uma escuta amorosa, humilde, ativa e sincera; que dissipa os medos e nos envia.

O terceiro domingo revela-nos que o próprio Jesus experimenta o cansaço: «cansado da caminhada»; mas, mesmo sentado, nem por isso deixa de caminhar e de (nos) fazer caminhar interiormente. Veja-se este maravilhoso e inspirador quadro da “Samaritana”. Junto ao poço, Jesus senta-se e demora-se, «perde tempo» com aquela mulher – com quem nem sequer deveria falar, afinal era uma samaritana. Faz-lhe um simples e pobre pedido: «Dá-me de beber» e, desta forma, abre-se todo um magnifico diálogo que é caminho franco e progressivo. Jesus escuta-a, dá-lhe tempo, espaço e liberdade para que esta possa fazer o seu próprio discernimento; um diálogo marcado pela reciprocidade e pelo tempo que se dá, até que surge o testemunho e o anúncio: era preciso que com(o) aquela mulher, a comunidade fizesse a experiência daquele Caminho e daquela Água.

No caminho, sempre no caminho, Jesus encontra agora um cego de nascença. Estamos no quarto domingo. Jesus toca, literalmente, os olhos daquela pessoa; cuida dela como cuida de cada um de nós; de tantas e variadas formas através de tantas pessoas… Mais do que ganhar o sentido da visão, aquele homem passou a ver o mundo e a vida de outra forma, de uma outra perspectiva… mais à maneira de Deus, vendo (com) o coração! Precisamos de deixar que Jesus nos toque com a sua Palavra que é luz e farol; que nos ensine a ver e a contemplar as realidades de cada tempo a partir do modo como Deus (nos) vê. É à luz da Palavra que se escuta, se lê, se estuda e se reza, que podemos cuidar melhor da nossa capacidade de discernimento e conversão.

Este percurso conclui-se (quinto domingo) com um momento dramático. Sempre no caminho das pessoas, isto é, das suas necessidades, Jesus não foge e não se desvia do seu caminho para Jerusalém! E é «perdendo tempo» com as pessoas, nos lugares onde se encontrava que o próprio Jesus nos ensina que mais do que as nossas verdades e seguranças, importa (con)fiar-se n’Aquele que tudo pode. Não só Jesus está no caminho como ao caminho se fazem as duas irmãs, em tempos diferentes, mas ambas na mesma direção: com os olhos e o coração postos no Senhor, mesmo que seja para o confrontar e interrogar, mas, ao mesmo tempo, abertas à serenidade e à força da sua Palavra de Vida.

Não esqueçamos que os Evangelhos (todo o Novo Testamento), bem como a Quaresma e toda a nossa vida, são escritos e vividos à luz daquela glória que Jesus antecipa aos seus discípulos no cimo do monte! É à luz da ressurreição que hoje continuamos a ser chamados para percorrer este caminho sinodal, marcado pela identidade batismal de quem é conduzido pelo Espírito como filho amado, a quem o Pai não deixa passar sede nem ficar na escuridão do medo e da fragilidade, porque é o Senhor Ressuscitado quem vem sempre ao nosso encontro para nos dar a (verdadeira) vida.

“O processo sinodal apresenta-se árduo e por vezes podemos até desanimar; mas aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do seu Reino”. Nesta Quaresma deixemo-nos moldar pelo Evangelho “para sermos artesãos de sinodalidade” no(s) caminho(s) de cada dia.

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