Dorsal Atlântica – Setenta e duas vezes servir

Padre José Júlio Rocha, Diocese de Angra

As tentações de Jesus no deserto foram o tema do Evangelho do primeiro domingo da quaresma. Talvez o que de mais belo e intrigante eu li sobre as tentações de Jesus foi obra de um russo, Dostoievski, num belíssimo capítulo inserido na sua magna obra “Os Irmãos Karamázov”. O capítulo intitula-se “A Lenda do Grande Inquisidor” e é uma história dentro da história do livro. Conta que Jesus desceu à Terra, na Sevilha do século XVI, em pleno esplendor da Inquisição espanhola. O Inquisidor-mor reconhece Jesus, manda-O prender e, à noite, vai à Sua cela para O acusar. De quê? O Inquisidor pergunta a Jesus porquê não cedeu às tentações do demónio. Porque não transformou as pedras em pão? Porque preferiu que as pessoas O seguissem pelo amor e não pelo pão? Ele bem sabia que a humanidade prefere o conforto do pão às incertezas do amor. Porque não se atirou do pináculo do Templo? O espetáculo daquele milagre estrondoso atrairia as multidões. Porque preferiu que O seguissem pela fé e não pelos sinais espetaculares? Ele bem sabia que a humanidade não é capaz de acreditar sem sinais. Porque não aceitou o poder dos reinos da Terra? Porque preferiu que a humanidade O seguisse pela liberdade, não pela força, não por ser obrigada a segui-Lo? Ele bem sabia que os homens têm medo da liberdade, preferem a segurança, alguém que os guie, a liberdade mete medo.

A grande afirmação do Inquisidor é que a Igreja veio corrigir os erros de Jesus. Não era viável a Igreja que Jesus queria. Por isso a mão pesada da autoridade da Igreja, que faz com que os cristãos vivam na ilusão da salvação, obedientes como cordeiros, com pão, milagres e rédea curta. Sim é ele, o Inquisidor, que ama verdadeiramente a humanidade, que a conhece, que a não quer deixar perder.

Esta lenda obriga qualquer pessoa de bom senso a pensar a Igreja e a sua história e a compará-la com o Evangelho. Será que o Evangelho que Jesus pregava, a Sua Boa-Nova, o Reino dos Céus que anunciava não passavam de uma utopia pouco viável, que a Igreja foi corrigindo, muitas vezes à força, para se manter fiel a esse mesmo Evangelho? É possível perdoar 70X7, amar os inimigos, dar a outra face, não ter duas túnicas, servir sempre, dar a vida? Não será tudo isso contrário à natureza humana? Kerigma ou instituição?

Um dia destes dediquei-me a esquadrinhar os quatro Evangelhos à procura de saber quantas vezes Jesus fala em humildade, serviço, fazer-se pequenino, fazer-se pobre. O número é impressionante! Em palavras e gestos, Jesus refere-se pelo menos setenta e duas vezes a isso. É muito. É demasiado eloquente ver Jesus, a Quem todo o poder foi dado, lavar os pés aos discípulos, mandando-os fazer o mesmo. Setenta e duas vezes serviço, humildade ou pobreza são vezes suficientes para podermos ter entendido que a Igreja não tinha outro caminho senão esse. Mas a Igreja encontrou outro caminho…

A tentação do poder é a maior fraqueza da História da Igreja. Jesus era um nómada. Não tinha morada a não ser nas tabernas dos pecadores, nos barrancos dos leprosos, nas casas dos doentes, na outra margem do lago, não tinha onde reclinar a cabeça. Nós construímos igrejas, catedrais, basílicas imponentes e só chamamos cristãos aos que nelas entram; alargámos as nossas filactérias com ouro e soubemos servir a Deus e ao dinheiro. Talvez tenhamos sido demasiado escravos da pureza da fé ao ponto de matar por isso. Nesse tempo éramos uma autoridade humanamente indiscutível e nada há mais perigoso do que isso: quem guardará os guardiães? A cada invetiva contra o depósito da fé, a Igreja respondia com regras, leis, “dogmas”, condenações, anátemas, de tal modo que, em pleno século XXI, vivemos numa camisa-de-forças, presos a um passado que não conseguimos mudar porque o que os papas disseram tem uma importância quase definitiva, mesmo que tenha sido dito há 500 anos. Há um respeitinho demasiado reverente pelas circunstâncias do passado, por aquilo que a Igreja já disse, como se fosse tudo definitivo, uma espécie de medo de contrariar o passado que nos afasta um pouco – ou muito – do espírito evangélico de Jesus. A questão do celibato, do estatuto da mulher dentro da Igreja ou da moral sexual são três exemplos mais ou menos comuns desse enredado em que estamos, sem conseguir dar um passo em frente ou atrás, porque já tanto foi escrito, dito ou feito que pouco mais conseguimos fazer.

O erro foi só um: o poder. O poder quando não foi serviço.

O “aggiornamento” do Concílio Vaticano II foi tão importante que ainda hoje muito está por pôr em prática: que a Igreja não seja autorreferencial, não se justifique a si própria, que a sua referência seja, cada vez mais, Jesus. Muitas coisas têm que mudar na Igreja.

Uma das realidades que nos devem fazer pensar, e muito, são as novas vocações sacerdotais, poucas, que têm aparecido. Há muitos jovens que se sentem atraídos pelo poder e pela proteção que a instituição lhes oferece. A rígida hierarquização, a liturgia pomposa das rendas, das batinas, dos incensos, dos ouros. A atração que a Igreja exerce pela Igreja, não por Jesus Cristo. A verdadeira vocação só pode ser serviço, não consolo. E o celibato só se entende assim: como serviço de entrega inteira, nunca como capa para uma afetividade não resolvida, que é o pão nosso de cada dia…

Três vezes Jesus foi tentado pelo poder. Ensinou-nos, por setenta e duas vezes, a servir. Já devíamos ter aprendido.

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