DO PASSADO, UM PRESENTE – São Vicente de Paulo na origem do Apoio domiciliário moderno

Padre José Alves, Congregação da Missão

O apoio domiciliário, uma das expressões mais faladas e admiradas do chamado “estado social europeu”, não é uma intuição nova. Começou, precisamente há 407 anos, resultante de um olhar atento e compassivo sobre a fragilidade da condição humana.

Naquela manhã de domingo, o P. Vicente preparava-se, na sacristia, para a celebração da Eucaristia. Por ali, passam sempre as últimas notícias a levar ao pároco. E aquela que chegava era bem deprimente. Ouçamo-lo, ele próprio, contar o que se passou:

” Veio alguém dizer-me que numa casa isolada, cerca de um quarto de légua dali, vivia uma família cujos elementos estavam todos de cama. Não havia ninguém que pudesse assisti-los e padeciam todos de grande necessidade. Comoveram-se-me as entranhas. À homilia, recomendei-a com grande interesse. E Deus, moveu toda a assembleia à compaixão, por esses pobres aflitos.”

Depois do jantar (almoço), reunimo-nos na casa de uma boa senhora fidalga para estudar o modo de socorrer essa família. Todos se mostravam dispostos a ir visitá-los, consolar de palavra e ajudá-los como pudessem. Depois das Vésperas (oração da tarde), pus-me a caminho em companhia de um amigo de Paris. Aqui e ali algumas mulheres que iam ou voltavam… Tantas eram que mais parecia uma procissão. Quando cheguei, visitei os doentes e fui buscar o Santíssimo Sacramento para os que estavam em perigo. Depois de os ter confessado e dado a comunhão, procurei saber o meio de socorrê-los nesta necessidade. Propus àquela boa gente, que a caridade tinha animado e ali tinha trazido, se cotizasse para, cada um, em seu dia, dar a sopa não somente àqueles doentes pobres, mas a todos os que haviam de vir no futuro. (1)

Deste relato, algumas atitudes a destacar:

  1. Olhar atento da pessoa que observa a situação, e a sua capacidade de a transmitir. É um membro anónimo da paróquia de Chatillon, ninguém sabe o seu nome, mas que observa e deixa-se tocar pelo que vê.
  2. Deixar-se comover. P. Vicente diz: “comoveram-se-me as entranhas”. E falou de tal maneira que levou os participantes na Eucaristia a “moverem-se à compaixão por esses pobres aflitos.”
  3. O movimento interior( é isto o que significa “comover-se”), levou ao movimento exterior, a deslocar-se, à ação (o P. Vicente e os participantes na Eucaristia) e a sentir nova onda de compaixão, pela observação direta
  4. Encontrar uma solução, não episódica, efémera, mas que dê repostas tanto no presente como no futuro. Daí, a necessidade de organizar, sem matar, a generosidade desta gente. Para isso, muito contribuiu a liderança  participativa do P. Vicente no envolvimento  das pessoas e que se manifesta em expressões como: “reunimo-nos”, ”todos se mostravam dispostos a ir visitá-los”, “pus-me a caminho” e “propus àquela gente que se cotizasse”.
  5. A Paróquia toma conta do seus necessitados. É uma novidade. Até então, as “Ordens Terceiras” ou as “Misericórdias” tinham assumido estre trabalho de dar corpo à Caridade cristã. Aliás com muito mérito! Eram  de constituição extra paroquial. Mas uma iniciativa de âmbito paroquial, surge com esta intuição do P. Vicente de Paulo. E assim nasceu, de uma forma organizada, uma associação de índole laical e paroquial que prestou o primeiro apoio domiciliário, e a que deram o nome “Caridade”

E para que perdurasse, e não fosse somente resultado da emoção do momento, o espírito organizador do P. Vicente de Paulo elabora um regulamento de que passo a  transcrever alguns parágrafos:

“Quem estiver de serviço, depois de ter tirado tudo o que for necessário da despensa para confecionar a comida para os pobres, naquele dia, prepara  a refeição, leva-a aos doentes e, ao chegar, cumprimenta-os com alegria e caridade. Prepara uma mesinha, na cama; sobre ela  estende uma toalha, coloca um copo, uma colher e pão. Lava as mãos do doente: reza o “Benedicite”; dita a sopa num tijela e a carne num prato; dispondo tudo na dita mesa.

Então, convida caridosamente o doente a comer, por amor de Deus da Sua Santa Mãe. Tudo com muito carinho, como se fosse o seu próprio filho, ou melhor, o Filho de Deus, que considera feito a Si mesmo todo o bem feito aos pobres.  Diz-lhe algumas palavras sobre Nosso Senhor; se o achar desolado, procura animá-lo. Corta a carne em pedaços e dá-lhe de beber.

Depois de ter preparado tudo para ele comer, se ainda houver mais algum doente, deixa este e passa a outro, tratando-o do mesmo modo. Terá sempre o cuidado de começar por aquele que tenha alguém em sua companhia e terminar naquele que viver sozinho, para poder ficar mais algum tempo com ele. Voltará à tarde, para trazer o jantar, e procederá do mesmo modo.(2(Extraído do regulamento da  1ª Confraria da Caridade, em 23 de Agosto de 1617).

Passaram-se 4 séculos. Todas estas situações sociais verdadeiramente dramáticas, antes ignoradas pelos poderes públicos, agora também começaram a ser assumidos pelo Estado. E ainda bem. Todavia, penso que estas instituições, nascidas da caridade cristã, conservam algo de  sempre novo, de fresco, de profundamente humano que o Estado não tem e, por isso, não dá… Só um coração comovido, debruçado sobre a miséria humana para curar e levantar, quem nela jaz prostrado, o pode fazer.. E continuam a ser as nossas Comunidades cristãs as detentoras (não únicas) desta missão.

Destaco o carinho e a delicadeza com que se aborda o doente; o cuidado com que tudo se lhe prepara, acompanhado de uma palavra amiga de encorajamento, para que não lhe falte o apetite, ou para que recupere o gosto e a alegria de viver…

A preocupação de começar por quem tem companhia (que humanamente seria mais encorajador) e terminar por aqueles que vivem sozinhos…( cuja conversa é mais difícil de manter mas onde é mais necessária), revela a atenção que os  funcionários sociais dificilmente têm ou por falta de tempo ou de sensibilidade.

Um jovem de século XIX (1830) Frederico Ozanam, estudante da Sorbone, impressionado com descristianização de Paris, cria um grupo que se vai inspirar nesta experiência de do P. Vicente de Paulo transmitida pela grande apóstola dos bairros pobres de Paris, Ir. Rosália Rendu, Filha da Caridade. . Hoje há muitas instituições que fornecem bens (alimentos, roupas, refeições…) E ainda bem!, mas são bem poucas as que fornecem aquilo de que talvez os nossos velhos, doentes ou os atingidos por outras misérias bem precisam: a humanidade, o carinho, a atenção que se faz através da visita domiciliária.

As Conferências de S. Vicente de Paulo, criadas pelo jovem estudante Frederico Ozanam inspirado nesta experiência do seu patrono, trabalham em rede com outras instituições, na distribuição de alimentos, de roupa ou de outros géneros de necessidade aos carenciados, mas conservam como sua especificidade, como sua marca identitária, a visita domiciliária, o acompanhamento, a atenção à pessoa a quem seguem na sua debilidade. Prestam um verdadeiro serviço público.

Padre José. Alves C.M.

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  1. Vincent De Paul, Oeuvres,XI,242
  2. Citado por Pierre Coste: Monsieur Vincent, T, I, pag 106
  3. J. Calvet, Cara Caridade: S. Vicente de Paulo,pag.56 s.

 

 

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