D. António Bessa Taipa, uma vida ao serviço da Igreja Católica

A Diocese do Porto junta-se hoje numa celebração de ação de graças pelo ministério do seu bispo auxiliar emérito D. António Taipa. A Agência ECCLESIA esteve com o homenageado para conversar sobre o seu percurso de vida: dos quase 20 de ministério episcopal; da sua dedicação à formação e ao ensino; da sua vida em Roma, onde estou Sagrada Escritura e encontrou um mundo novo; e da própria Igreja Católica no Porto.

Entrevista conduzida por Paulo Rocha

 

Agência ECCLESIA (AE) – D. António Taipa prepara-se para uma nova etapa na sua vida, que foi marcada pela formação, pelo ensino, pela proximidade ao clero desta Diocese do Porto.

D. António Taipa (AT) – De facto assim foi. Quando D. Florentino (de Andrade e Silva, administrador apostólico entre 1959 e 1969) me chamou para me nomear, depois de me ter ordenado presbítero, disse-me: “Sei que preferias ser pároco, e disseste-o muitas vezes, mas preciso de ti noutro sítio”. E mandou-me para o seminário, onde comecei o exercício do ministério sacerdotal com meninos do que agora equivaleria ao 6.º ano de escolaridade.

Fui com a alegria de quem vai mandado para ver o que ia acontecer. Já estavam lá dois padres que conhecia, tinham sido meus contemporâneos. Foi muito bonito e acabei o ano encantado com o serviço, com a missão de ajudar aqueles miúdos a crescer nas diversas dimensões da vida.

No fim do ano já estava a projetar o ano seguinte quando o senhor D. Florentino nos chamou aos três – eu, o padre Peres e o padre Boaventura – e disse que um ia sair e não disse quem. Já quase no fim da conversa disse que era eu quem ia estudar.

Eu disse: Se tenho de sair, se tenho de ir para Roma, quero estudar Sagrada Escritura.

Custou-me muito, custou-me mais isso do que inicialmente ter ido para o seminário, já estava projetado naquela vida, porque eram cinco anos que estavam na frente.

Recordo-me que um mês antes de ir fui apresentar ao senhor D. Florentino os requerimentos dos alunos para o 3.º e vinha com ela estudada: vou dizer que não quero ir.

Ele falou-me de ir para Roma como se fosse ali a Santo Tirso ou Penafiel e fiquei absolutamente desarmado…

 

AE – Como foram vividos esses cinco anos em Roma? Sentiam-se muito as tensões por causa do Concílio Vaticano II?

AT – Foram cinco anos maravilhosos de descoberta. Estava o concílio ainda a ferver, era em 1967-1968. Estava a decorrer um sínodo em Roma, era um entusiamo imenso pelas novidades.

As tensões sentiam-se muito. Nunca mais esqueço que vi o (Papa) Paulo VI chorar numa homilia de Quinta-feira Santa, das perturbações que estavam a acontecer na Igreja.

Às vezes ouvia dizer que quem vai para Roma perde a fé. Graças a Deus não perdi a fé, mas solidifiquei a fé, porque em contacto com o estudo, com as fraquezas, com a humanidade da Igreja, que ali se sente mais, fui purificando a minha ideia da Igreja, da fé, de crente e vivi cinco anos maravilhosos.

Era novo, tinha 24 anos, ir para Roma naquela altura era uma coisa complicada, estávamos em 1967, era outro mundo. O que se via naquelas ruas era uma coisa horrorosa e quem me ajudou imenso foi D. José Policarpo, que já lá estava, era mais velho 4 ou 5 anos. Fez o favor de ser muito meu amigo, de brincar muito comigo sobre tudo o que ia acontecendo. Foi o que me ficou mais, mas tive graças a Deus muitos colegas, amigos, tínhamos uma camaradagem muito forte.

Depois era a paixão pelo estudo: não fazia mais nada senão estudar, senão trabalhar e dia e de noite. Recordo-me do ano de licenciatura e estudava mais de 12 horas por dia, mas apaixonado. Era um estudar que não era propriamente para o exame, era para saber, para mergulhar naquelas coisas todas. Para mim era quase tudo novo.

A certa altura custou-me tanto vir para Portugal como ir para lá. Sou muito fácil de adaptar-me a situações novas, não tenho problema, faço amizades e encontrei amigos por toda a parte, encontrei grandes professores.

 

AE – Quando regressou a Portugal, veio completamente imbuído da Sagrada Escritura?

AT – Apaixonado pela Sagrada Escritura, isso não há dúvida. Essa paixão começou cá, quando era seminarista no Seminário do Porto, com um dos meus grandes professores, o Dr. Godinho. Ele ensinava, pregava, quase que morria a ensinar Sagrada Escritura, conquistava-nos, e essa paixão continuou.

Aprofundei em Roma, foram dois anos em Teologia Dogmática e três em Sagrada Escritura e vim apaixonado.

 

AE – Disse que lhe custou ir para o seminário. Qual era a sua vontade, depois da ordenação presbiteral?

AT – Projetei-me sempre para ser pároco e sonhava com a paroquialidade e com uma equipa de padres a trabalhar numa zona em Amarante; era o meu sonho, gostava muito daquela gente.

Estava sentado na sala de espera do Paço para ser nomeado e perguntei ao secretario do senhor D. Florentino: Ontem esteve aqui o senhor padre Celestino Ramos de Santo Tirso? Pensava que ia para Santo Tirso como coadjutor.

“Esteve mas também esteve o padre Peres”, que era o diretor do seminário. Depois chegou outro colega, o senhor padre Jardim, e disse que eu ia para o seminário e ele para Santo Tirso.

De facto, custou-me nessa altura, mas só até dizer que sim e depois acabou. Projetei-me para aquilo, como se diz agora, focalizei-me naquilo e não tive problemas nenhuns de ordem nenhuma.

Custou-me a ida para Roma mas também a vinda, depois de cinco anos, por muitos motivos: Estávamos em 67 e impressionou-me imenso entrar numa sociedade livre. Estava a ver televisão e até tinha medo porque ouvia dizer mal do primeiro-ministro, a criticar o presidente da República (Itália) e até sentia medo.

Fez-me crescer muito, numa sociedade livre, com os seus defeitos e também as suas virtudes, e aqui também me ajudou muito o senhor D. José Policarpo a manter os equilíbrios, a ser capaz de fazer o discernimento das coisas, para manter a serenidade. Foi um tempo muito forte.

 

AE – Houve esta mudança na Igreja Católica, para uma liberdade também, a que se seguiu depois na sociedade portuguesa, no 25 de Abril. Viveu todos esses movimentos?

AT – Regressei em 1972 e o bispo D. António Ferreira Gomes mandou-me para o seminário, para professor de Sagrada Escritura, e para perfeito, colaborador de D. Armindo (Coelho, futuro bispo da diocese) que era reitor. Começou uma etapa séria e forte.

 

AE – Antes dessa etapa, gostava que recordasse como foi a vida na Diocese do Porto nesses tempos de transição entre D. Florentino e D. António Ferreira Gomes?

AT – Fui ordenado em 1966, e o senhor D. António veio depois em 69. Penso que posso dizê-lo, no seminário viveu-se uma certa antecipação do maio de 68, em Paris. Não digo de revolução, mas de convulsões fortes internas ao seminário. Tínhamos um reitor muito aberto e aproveitávamos a abertura: conversávamos e dizíamos e discutíamos, púnhamos tudo de pernas ao ar. Foram dois, três anos muito fortes que continuaram.

Esta mudança no seminário foi a passagem para um tipo de relação entre seminaristas e formadores e professores diferenciada, mais livre, mais aberta, mais personalizada, mais centrada na pessoa de cada um. Isso aconteceu e com alguma violência. As coisas acalmaram, o senhor D. António passou ali uns tempos um bocado difíceis e chamou o senhor D. Armindo para reitor, as coisas foram-se equilibrando, e vim nessa altura.

 

AE – Que tensões eram essas? Entre os responsáveis e os alunos?

AT – Eram tensões com o sistema. Nós adorávamos o nosso reitor, o nosso vice-reitor, os padres que lá estavam eram maravilhosos.

Era o rebentar de uma situação que já não podia mais. Do professor e do aluno, do superior e do inferior para outro tipo de relação mais amiga. Não é mais igualitária, nós respeitávamo-nos muito, mas de maior consideração de uns pelos outros. Tínhamos uma associação de estudantes muito forte e interventiva na vida da casa. A certa altura começamos a dizer que queríamos um bocado mais.

Havia intervenções da parte do reitor, mesmo do vice-reitor, que ultrapassavam um bocado e calcavam um bocado aquilo que eram os nossos direitos, dos nossos estatutos. Recordo que tivemos conversas interessantíssimas com o reitor. Tudo de maneira pacífica, mas dura, e fazia sofrer, era convicta da nossa parte e dos superiores da altura.

Foi muito bonito e aí tivemos oportunidade de ver e apreciar o valor de quem estava connosco, os padres que estavam connosco. Grandes padres, grandes dedicações que nunca tremeram, viveram connosco as situações e as dificuldades.

 

AE – D. António Ferreira Gomes soube gerir toda essa situação?

AT – O senhor D. António ouvia. Nós íamos falar com ele, lia e respondia a comunicados, exposições que fazíamos. Respondia à maneira dele, a bater mesmo no osso nas ideias e nas propostas. Graças a Deus. Quando ele falava, quando nos recebia para falar connosco, era de tremer, ia até ao osso.

Gostava muito dele por muitas coisas e também por isto: um homem tremendamente exigente, ia ao fundo das coisas, mas ouvia e era capaz de voltar atrás e refazer maneiras de pensar, ideias.

 

AE – Foi este seminário que ajudou a construir, enquanto seminarista, que depois teve de liderar?

AT – Foi um seminário que vim encontrar um bocado pacificado, mas ainda tenso, em outubro de 72, recordo-o muito bem. Tive depois de ouvir o outro lado, os seminaristas, com muito gosto. Também fui seminarista e dizia: ‘Não fazeis nada de novo para mim’. Foi um tempo muito bonito, até ao 25 de abril (1974) e pacificação nos anos seguintes. O D. Armindo, que era o reitor na altura, era um homem maravilhoso.

 

AE – Mas eram personalidades diferentes?

AT- Sim, sim, mas com muita coisa parecida. O senhor D. Armindo parecia um homem frio, mas não era. Sentado a uma mesa ou numa conversa era maravilhoso. Quando saiu para bispo perguntei: Mas e agora como é que vamos comer? Sem o D. Armindo aqui com a alegria dele, o apetite, a boa disposição. Era um homem espantoso com uma capacidade de humor única, que ninguém conhecia. E depois era muito amigo e era muito meu amigo. Conifava muito em mim, ajudou-me muito a crescer.

Foram sete anos a aprender com ele. D. António (Ferreira Gomes), em janeiro, mandou-me chamar e disse: “Sabe que o cargo de reitor não é vitalício, se D. Armindo saísse, quem teria um perfil de reitor?”.

Estive a dizer o que como entendia um reitor de seminário. “Bom, estava a pensar em si”.

A responsabilidade era grande, o seminário ainda estava com algumas tensões, mas tinha bons colegas, amigos, colaboradores, fiéis, impecáveis. E realizei o que foi sempre o meu sonho, que era trabalhar com uma equipa de padres.

Foram ali 20 anos como reitor, mas de maneira apaixonada, gostei muito, muito, um tempo que é desgastante, a ocupação 24 sobre 24 horas, pensamos neles em tudo e a respeito de tudo. É estar com eles: estar com eles a comer, estar com eles a brincar, estar com eles a rezar, estar com eles a trabalhar. Obriga a viver ali concentrado, concentrado na vida, mas com muita alegria.

 

AE – Essa alegria, paixão, competência por esse trabalho faz com que várias gerações de sacerdotes na Diocese do Porto o tenham na sua história?

AT – Tenho 110 padres no exercício do ministério que passaram por mim, fui reitor deles. Graças a Deus. Isso foi muito bom para mim, como bispo.

A minha vida de reitor foi uma vida simples. Passou muita gente pela mão, muita gente que se ordenou, muitos que não se ordenaram que estão aí na sociedade, homens fortes, homens vivos, homens dedicados, que dão cartas na vida social, graças a Deus.

Já naquela altura, e agora mais, penso que quer a Igreja, quer a sociedade, têm necessidade grande de homens fiéis a si próprios, fieis à missão que a sociedade ou a Igreja lhe confia. Homens de verdade, longe das corrupções e do tráfico de influências. Penso que é por aqui que se deve andar, aqui na formação de homens a sério, porque é onde aparece um padre a sério, e um bispo a sério. Com defeitos, tudo o que se quiser imaginar. Um homem que vive projetado num esforço de verdade, em relação a si, à sua missão, aos outros.

Estou convencido que o que Deus quer de cada um de nós é que viva, viva com verdade. E para viver com verdade é preciso comer, senão morre-se; ir à mesa e comer e “beber uma pinga”. Também é preciso rezar e é preciso meditar, refletir e refletir-se a si próprio, refletir a vida e refletir a sua relação com o que é para nós o homem perfeito; sem isso também não vai. Isto para viver! O homem é criado para viver. E tudo mais na vida é o viver que dá sentido.

 

AE – Estava a ouvi-lo e a pensar nos casos que deitam por terra todo esse ideal. No tempo em que foi reitor, deparou-se com situações de ambiguidade de carácter, abusos de autoridade, e outros? Como foi gerindo esses casos?

AT – Olhamos para eles e pensamo-los muito. Olhava eu e mais três padres para tentar penetrar na personalidade de cada um, nos segredos, naquilo que não se diz a ninguém, mas que topamos em todas as situações, até a jogar futebol.

Em todas as situações, as pessoas vão dizendo quem são, as suas virtudes e defeitos. Tive de pedir a alguns para abandonar o seminário. Nunca tive problemas, todos aceitaram, por desvios de personalidade, afetivos, e eles entendiam perfeitamente. Às vezes, pessoas cá de fora não entendiam como eles.

Isto é doloroso termos de chamar um rapaz e dizer-lhe: Nós entendemos que a tua vida não será esta. – “O Senhor acha? É que eu também acho isso”.

Resolvíamos sempre de maneira pacífica. Ajudei muitos depois de saírem a fazer os cursos superiores porque ficávamos de bem, com boa relação.

Como também é doloroso haver quem alimentamos esperanças, que vai ser um padre fora de série, e ele vem connosco ao gabinete: “Quero desistir e não me diga que sou simpático, inteligente”.

 

AE – Aí também se vê a integridade da pessoa?

AT – A gente consolava-se com esta simplicidade, integridade, verdade. Não quer dizer que não tenha não houvesse coisas que passaram e não deviam ter passado. Somos humanos, empenhamo-nos, damos o nosso melhor. Depois a vida de cada é sempre um mistério. Foram 20 anos adoráveis, mas desgastantes.

 

AE – Foram 20 anos em que muitos falam de uma pedagogia da proximidade que desenvolveu com todos. Pedagogia da “porta aberta”, foi a expressão que ouvi.

AT – Era a pedagogia do padre Américo, um homem que me apaixonou. Não o conheci pessoalmente, mas li os livros dele várias vezes, era e é apaixonante a leitura do padre Américo.

Os seminaristas não tinham chave da porta, porque era um perigo, quando queriam sair, pediam e levavam a chave. Iam ao meu gabinete, ou de outro padre, tirar a chave. Às vezes ficava à espera que ele voltasse. E eles comentavam: ‘Olha o gajo a vigiar’.

Eu não estava a vigiar, estava morto que viesse porque queria vê-lo em casa, com medo que acontecesse alguma coisa. Eles perceberam também isto, que estava à espera deles não era para ver a que horas chegavam, era para ter a certeza que estava em casa, que não tinha acontecido nada.

Depois, as coisas foram avançando, foram mudando. Esteve lá um padre a fazer um tratamento no (hospital) Santo António, que tinha sido meu contemporâneo, e não lhe dava jeito ir para casa, que, a certa altura, disse: “Ó António, isto já não é nada como no nosso tempo”. Não, e mudou sem a gente dar conta. Fomos vivendo e tentando responder às coisas de ano para ano, de mês para mês, e estamos aqui e vamos ver até onde vai. Foi tudo de maneira simples e conversada.

Tínhamos reuniões anuais com outros reitores, como D. António Francisco (dos Santos – então reitor na Diocese de Lamego, que seria bispo do Porto) com quem conversei muito.

 

AE – Como está a acompanhar os casos de abusos sexuais por membros do clero e a resposta da Igreja Católica?

AT – São as mazelas da sociedade, a Igreja está na sociedade e somos homens como os outros homens. Com estas mudanças todas, às vezes, não sei também não perderemos algumas referências para a nossa vida.

Sofro com essas coisas todas, mas não desespero. Dizemos desde sempre que a Igreja é pecadora mas nunca levamos isto a sério. Agora vê-se, são os nossos pecados que são da responsabilidade de uns e outros, de uma maneira ou outra maneira. Isto obriga-nos a ver como estamos a fazer, como estamos a proceder nestas áreas e depois também nos obriga a sermos muito mais misericordiosos e tolerantes com a sociedade.

Às vezes criticamos situações e temos de ter calma, porque temos em casa as mesmas coisas, às vezes em grau superior. Aqui vem o que dizia há pouco, o que se exige é a formação do homem em sociedade, do homem que seja capaz de viver e conviver com o outro. Viver para o outro, viver com o outro, viver ao lado. Isto é que se exige, no sentido de ajudar em cada momento, e em cada altura, ser fiel a si próprio e à missão que a sociedade ou a Igreja lhe confia.

Depois temos outras ajudas a nível espiritual, que, às vezes, também não se respeita muito. Para viver é preciso comer e rezar, e refletir, e pensar-se diante de Deus, pensar-se diante de Jesus Cristo. Pensar como somos, sem medo daquilo que somos, sem medo das fraquezas, dos limites, das limitações.

Às vezes dizia aos rapazes que Ele disse aos apóstolos “Não fostes vós que me escolheste, fui eu que vos chamei”, portanto, Ele é que tem a responsabilidade e depois não falha nas ajudas que é preciso dar.

 

AE – Uma referência à sua paixão pela Bíblia, no tempo em que estudava 12 horas por dia, mas sobretudo no tempo em que foi professor de Sagrada Escritura. Segundo ouvimos, contagiou e passou essa paixão aos alunos…

AT – Isso foi o que quis. Para além de ensinar algumas coisas que é preciso saber de Grego, Hebraico e técnicas de interpretação, criar neles alguma paixão de leitura pela Sagrada Escritura. Se não criar neles alguma paixão, as técnicas não têm interesse nenhum.

Procurei sempre nas minhas aulas dar de acordo com a sociedade, com o que se ia passando, para irem fazendo esta descoberta da adequação da Palavra Bíblica à  palavra da vida, à vida, da vida à Bíblia: iluminar a vida com a Bíblia e depois aprender a ler a Bíblia com a vida. Isto tentei fazer.

Pela maneira que falam e me procuram, parece que muita coisa ficou. Ter de dar as aulas também me obrigava a estudar, a atualizar. E foi bonito. Agora olho para eles encantado da vida, com alguma vaidade por ter sido professor deles.

A certa altura também disse ao bispo, já era o D. Armindo, “agora saio mesmo, já não sei mais educar, é preciso um reitor novo”. Tinha 55 anos, era preciso um reitor novo que estivesse mais metido na vida do que eu.

No meu tempo, eles tinham aulas de manhã, estudavam de tarde, jogávamos futebol juntos, fazíamos refeições juntos, isto mudou tudo:  aulas de tarde, um vêm almoçar à 1 hora, outro à hora e meia, outro às 2, já não estava com eles…

 

AE – Passado pouco tempo, foi nomeado bispo auxiliar do Porto. Antes, no final da década de 60, tinha vivido com D. António Ferreira Gomes, com D. Florentino. Como é que a diocese passou nessas tensões, que eram também políticas e sociais?

AT – Tive um professor, que depois foi meu colega, que ficava altamente mal-disposto quando lhe falavam na divisão do Clero Porto. Foi uma altura tensa, o senhor D. António no exílio, o senhor D. Florentino como administrador apostólico.

Alguns dos homens mais apaixonados pelo D. António eram os colaboradores mais fortes de D. Florentino. O facto de uns estarem mais inclinados, simpatizando por D. Florentino, outros por D. António, não contribuiu minimamente para qualquer tipo de divisão.

A diocese trabalhou muito e muito bem durante os 10 anos que senhor D. Florentino foi administrador apostólico. Eu falava muito nisto aos rapazes.

Foi um espaço na história muito bonito para as pessoas aprenderem com a grandeza destes padres desta altura. Eram grandes sacerdotes que trabalharam imenso para vir o senhor D. António e colaboraram imenso com o senhor D. Florentino na maior lealdade, na maior dedicação. É esta a ideia que tenho deste tempo.

 

AE – Falar da divisão do clero é uma falsa ideia?

AT – Para mim é falsa ideia falar de divisão. Podia haver alguma coisa, mas no conjunto o Clero estava unido a trabalhar na diocese e sob a orientação do senhor D. Florentino, não conheço infidelidade, nem traições. O que me dá um prazer particular porque ajuda a ver a grandeza destes homens, destes padres, que trabalharam num tempo que não era fácil.

Depois veio o senhor D. António, entrou, não houve convulsões.

 

AE – Damos um salto na história até à altura que foi nomeado bispo auxiliar – primeiro com D. Armindo, depois D. Manuel Clemente, D. António Francisco e agora D. Manuel Linda. Foi um percurso bastante longo, com diferentes tipos de colaboração?

AT – Foi bonito, porque foi uma vida de auxiliar com muita liberdade por parte do bispo diocesano. Na fidelidade, estou a dizer isto, mas devia estar calado, estes problemas nem se põem, acontecem naturalmente. Dizia D. Manuel Clemente, temos um ministério episcopal nesta diocese que é exercido por quatro bispos: um mais três.

Vivíamos em comunhão, no trabalho que cada um fazia, e cada um trabalhou sempre de acordo consigo próprio e, consequentemente, de maneira diferente, ainda que ninguém notasse. Todos os 15 dias púnhamos em comum o que íamos fazendo, os projetos, as realizações. As dificuldades, os problemas que era preciso resolver. De maneira tão diferente, quão diferente eram as pessoas.

E de maneira muito simples, amiga, normal e natural, de alguém que estava empenhado na mesma coisa que era a vida da diocese. Tivemos a vida organizada de maneira diferente. Com D. Armindo não tínhamos zonas pastorais, fiz visitas pastorais na diocese toda. Depois mudou o sistema e estive na região Nascente, era uma zona que adorava particularmente, tinha no meio Amarante, que era terra dos meus sonhos. É uma paixão que não sei explicá-la, quando era seminarista ia lá muito.

Foi um exercício do ministério episcopal diversificado, de acordo também com a diversificação da orientação de cada bispo. Depois a riqueza de trabalhar com bispos diferentes, D. Armindo, D. Manuel Clemente, D. António Francisco, pessoas todas tão diferentes e que nos demos sempre tão bem e gostamos sempre uns dos outros.

Isto é consolador, quer com o bispo auxiliar, quer com o bispo diocesano demo-nos sempre tão bem. Nem sempre tivemos de acordo em absoluto, mas discutimos e conversamos.

Foram 19 anos muito felizes, apaixonados, mas com muita alegria, com muita felicidade.

 

AE – O que significa ser bispo do Porto na sociedade portuguesa, na Igreja Católica?

AT – É ser bispo de uma grande diocese. Somos quase 2 milhões e meio, temos umas centenas de padres, centenas de paroquias. É ser bispo de uma grande diocese. É estar preparado para os problemas correlativos, uma grande diocese naturalmente tem mais problemas e eventualmente mais fortes. É também uma diocese onde se trabalha muito, com muita seriedade, com um laicado maravilhoso.

A gente vai por aí e faz reuniões com os que trabalham com o pároco na pastoral da paroquia e encontram-se centenas de pessoas, dedicadíssimas, interessadíssimas nas coisas, muito bem formadas. Estamos sempre a dizer que é preciso formar os leigos, e é, mas este estão informados e querem avançar.

É uma diocese que tem um peso muito forte. Costumo dizer que muitas dioceses do país têm a população da nossa cidade do Porto, 300 mil pessoas, e esta dimensão da diocese obriga a pensar, a refletir, a partilhar, obriga a praticar com verdade a corresponsabilidade. E para haver corresponsáveis, é preciso que o responsável conceda, admita isto. A responsabilidade é também entre nós, não é só dos padres e dos leigos.

A Diocese do Porto vai partilhando também as suas coisas. No nosso seminário tivemos alunos de Bragança-Miranda, Vila Real, Portalegre-Castelo Branco, agora temos seminaristas de Vila Real, de Coimbra. É uma maneira de as Igrejas praticarem a sua comunhão e daqueles que podem mais acolherem aqueles que eventualmente podem menos, e padres que vêm de fora.

Temos defeitos decorrentes das nossas fraquezas, mas temos um clero muito trabalhador, dedicado, temos um laicado igualmente vivo, apaixonado e apaixonante.

 

AE – Foram anos de estudo, 20 anos no seminário, outros tantos como bispo auxiliar. E agora o que pretende fazer, que projetos quer ver concretizados?

AT – Estou a passar de uma etapa da minha vida para outra, às vezes digo que agora vou fazer o que me apetecer. De certo modo é verdade, mas não deixei de ser bispo, há coisas que não devo fazer como bispo emérito, mas há coisas que posso fazer, estar com os padres, ir às paroquias, crismar.

Estou na disponibilidade de fazer o que me pedirem, quer o bispo da diocese, quer os padres, até onde puder e Deus me der ajuda.

Costumo contar um episódio com a minha mãe. Uma ocasião estávamos na minha casa, num domingo, e ela disse-me: “Ó António, tu não achas que rezas pouco?”.

Nunca mais me esqueci e agora vou dizer à minha mãe que vou rezar mais. Neste tempo de menos ocupação, vai dar para rezar mais, para estudar algumas coisas que gostava de rezar e não tinha tempo para isso. Tenho medo de não o fazer porque tudo o que fiz foi sempre solicitado para dar uma aula, fazer uma homilia. Tenho de ter vontade para estudar sem ser para colmatar uma necessidade imediata.

 

AE – Voltar ao tempo em que estudava 12 horas por dia?

AT – Não sei se tenho tempo para isso, nessa altura tinha 20, agora tenho 76 anos. Também tenho de ter consciência das limitações, mas feliz da vida. Custa fazer esta passagem, custa.

Ainda não entreguei as chaves do Paço Episcopal, mas já entreguei o comando da garagem e é a sensação agora não és daqui, isto não é a tua casa. Custa, mas não arrasa. Aceita-se, naturalmente, são os caminhos da vida.

Tenho falado disto, a gente sente que a morte é uma coisa lenta, começamos a morrer logo que nascemos. Começamos a perder capacidades, até quando Nosso Senhor no quiser levar e acabou.

 

AE – Em todo o seu percurso de vida, o que lhe terá custado mais foi saber da morte do senhor D. António Francisco dos Santos…

AT – Nem queria falar muito disso porque, ainda agora, não acredito muito que ele tenha morrido. Ainda agora parece-me um sonho…

Vivi muito com ele a diocese e depois vivi aquele entusiasmo dele em Fátima na peregrinação (diocesana do Porto ao santuário). Era muito amigo do D. António. Aquela morte… Ia a caminho de Fátima, ele telefonou-me e disse-lhe: ‘Senhor D. António, está mal’. Custou-me imenso.

Muitas vezes ainda me dá a impressão de que está ali a olhar. Era um homem bom, um homem grande, santo.

Ele muitas vezes ia celebrar às 08h00 da manhã diretamente da mesa do trabalho. Dizia-lhe “o senhor mata-se” e ele ria-se. O senhor D. Manuel Martins (primeiro bispo de Setúbal) dizia: “onde é que ele arranja tempo para fazer o que faz e como faz?”.

Depois muito amigo, muito atento, muito atento à nossa vida. Com ele e D. Armindo tive uma relação particular, muito mais forte, do que com senhor D. Manuel que era muito amigo e colaborador, e D. Manuel Linda, de quem sou muito amigo e fui professor.

D. António Francisco foi único. A gente pergunta como é possível que em três anos e pouco movimentar assim a diocese. Passou ao lado dos meios de comunicação, mas era muito próximo das pessoas. Era um homem profundamente atento a tudo, à vida de todos e a toda a vida. Dos mais fracos e dos mais fortes, recebia com o mesmo entusiasmo um capitalista, um homem da grande sociedade, como um sem-abrigo, falava deles com a mesma preocupação.

Um homem que deixou marcas, que me deixou marca a mim. Graças a Deus que está no céu, perdemos um bispo aqui na terra, mas ganhámos um intercessor no céu. Assim esperamos.

 

Perfil Biográfico de D. António Bessa Taipa na Diocese do Porto.

 

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