Conferência Episcopal Portuguesa lança nova tradução da Bíblia, para fazer pontes entre texto original e cultura contemporânea

D. Anacleto Oliveira, biblista e bispo de Viana do Castelo, é o coordenador do projeto

A Conferência Episcopal apresenta 25 de março o primeiro volume da nova tradução da Bíblia em português, feita por 34 investigadores a partir das línguas originais, com a publicação da edição de “Os Quatro Evangelhos e os Salmos”. Além das dezenas de colaboradores, em várias áreas, a iniciativa tem como marca de inovação a intenção de integrar também os leitores no resultado final.

D. Anacleto Oliveira, biblista e bispo de Viana do Castelo, é o coordenador do projeto e fala à Agência ECCLESIA de todo o processo que, ao longo dos últimos anos, permite agora publicar um texto que fale à cultura contemporânea e responda às necessidades da comunidade católica, na Liturgia e na Evangelização. Tudo com o objetivo de apresentar “uma tradução literal, mas não literalista”.

Entrevista conduzida por Octávio Carmo

 

A primeira pergunta que tivemos nas redes sociais, ao publicar a notícia sobre uma nova edição da Sagrada Escritura em Português, foi: para quê uma nova tradução da Bíblia?

O que é que está por trás deste projeto?

O que está por trás deste projeto é a necessidade de a Conferência Episcopal Portuguesa ter uma Bíblia da sua responsabilidade, isto é um desejo que vem já desde o Concílio Vaticano II (1962-1965). É interessante que os próprios bispos e os biblistas, nessa altura, manifestaram esse desejo. Depois foi-se repetindo, periodicamente, até que há coisa de 10 anos, se tanto, alguns biblistas que, entretanto, foram ordenados bispos, insistiram na ideia. Achávamos que tínhamos meios para isso, financeiros e, sobretudo, tradutores à altura de podermos enveredar por essa iniciativa. Sabendo, entretanto, que outras conferências episcopais já tinham realizado o mesmo, basta dizer que a Conferência Episcopal Alemã já tem a segunda edição; a mesma coisa acontece com a Conferência Episcopal Italiana. A Conferência Episcopal Espanhola fez a sua coisa há meia dúzia de anos, se tanto; a Conferência Episcopal Francesa, para todos os países de língua francesa, também fez a sua tradução. Isto, no fundo, foi um desejo, não uma imposição por parte do Vaticano, em relação a nós.

Isto não significa desprimor nenhum com as traduções que já temos, gostaria que isto ficasse muito claro. Cada tradução tem o seu cunho, concreto. Em português de Portugal, até este momento, só existia uma Bíblia traduzida dos textos originais, que é a dos Capuchinhos, todas as outras são traduções de traduções: há a Bíblia de Jerusalém, cujo original é francês; a Tradução Ecuménica da Bíblia, cujo original é francês; há uma tradução dos Paulistas, cujo original é italiano. Portanto, é tradução de outra tradução. A razão principal é esta.

 

Qual é o objetivo desta tradução?

É uma Bíblia para uso dos cristãos, primariamente na Liturgia; em segundo lugar, em todas as outras atividades que nós dizemos formativas, como a catequese, a disciplina de EMRC – porque é muito aborrecido um miúdo ter uma tradução e outro, ao lado, ter uma tradução diferente, cria uma confusão tremenda. A tradução oficial não exclui as outras, pelo contrário, agradecemos que as outras se mantenham, porque seguem critérios que nós não seguimos.

A isto, juntou-se a necessidade de revisão da própria tradução litúrgica: havia imprecisões, havia contradições entre traduções, havia erros, diria erros de palmatória. Iam-se adensando as críticas, as vozes, de que era necessária uma tradução atualizada.

As traduções da Bíblia são periódicas. Porquê? Porque a investigação sobre a Bíblia continua, sempre. A vários níveis, desde logo na descoberta dos textos originais. Permanentemente, há atualizações: na Faculdade de Teologia Evangélica da Universidade de Múnster, onde eu estudei, há um instituto só dedicado à investigação dos manuscritos que vão aparecendo, com textos bíblicos. Porque não temos o manuscrito original de nenhum texto bíblico. Isto é um trabalho que exige, portanto, revisões permanentes. A edição de base do texto grego já vai, suponho, na 28ª versão, há atualizações permanentes.

Depois, a própria interpretação. Eu fiz a minha tese de doutoramento, antes de mim tinham feito outros, depois de mim outros… O próprio texto bíblico é passível, e bem, de novas interpretações. Dentro deste processo de investigação, é normal uma tradução da Bíblia.

 

Há também uma evolução evidente, que é a da própria língua portuguesa…

Exatamente, esse outro aspeto é muito importante: a própria língua evolui, há termos novos que aparecem, outros deixam de estar em uso e nós temos de acompanhar a língua, nesta evolução, normal. Esta tradução, estou convencido, daqui a 10 ou 20 anos vai ter uma revisão, que nós agradecemos, o que significa que a Palavra de Deus é viva, usando uma expressão da própria Sagrada Escritura.

 

No texto de tradução do Pai-Nosso, por exemplo, Deus é tratado por ‘Tu’. É preciso fazer uma catequese do que esta tradução implica na vida de fé?

É. Aí está exatamente uma evolução que houve na sociedade portuguesa, diria, nos últimos 50 anos. Há 50 anos, um filho tratar um pai por tu seria uma ofensa. Hoje, comummente, os filhos tratam o pai por “tu”, porque isso implica uma intimidade muito mais profunda; a exceção são os filhos que tratam os pais por senhor ou vossemecê, como se dizia no meu tempo. Até nisso, nós achamos que era importante evoluir. Posso dizer que foi uma decisão tomada, por votação, na Conferência Episcopal. Não foi de ânimo leve, porque havia opiniões diferentes, mas a maioria dos bispos disse: “Não, é tempo de passarmos a isso”.

Agora, na revisão do Missal, que está para sair, já se coloca a questão de não passar esta tradução para lá e passar a tratar Deus por “Tu”. Suponho que ainda não vai ser nesta edição, mas quando a Bíblia estiver traduzida, nessa altura, vai haver colisão, porque há muitos textos da Bíblia que são lidos na Liturgia. Se os fiéis ouvem um texto oficial em que Deus é tratado por “Tu” e as orações em que é ainda tratado por “Senhor”, é evidente que vai causar choque, mas é a evolução da cultura, estamos noutra época. Chocaria se continuássemos a tratar Deus como se trata um pai à maneira antiga…

 

Como é que foi este processo? Há muita gente envolvida na tradução, no olhar sobre o que significa hoje aquela palavra original?

Esse é o trabalho mais duro. A tradução passa por várias fases: o primeiro trabalho foi fazer uma consulta, a todos os biblistas, começando naturalmente pelos membros da Associação Bíblica Portuguesa, com a chancela da Conferência Episcopal, que é corresponsável nesta tradução. Foram constituídas comissões e depois foi feita uma sondagem a todos os biblistas, para que nos indicassem quais os livros que preferiam traduzir – naturalmente, nem todos são especialistas em todas as áreas – e cada um apresentou a lista; em seguida, fizemos a distribuição, por eles. Esse primeiro trabalho foi: um biblista, especialista, interessado num determinado livro bíblico, faz a sua tradução, rigorosa, sendo, quanto possível, fiel ao texto original, mas tendo já, nessa fase, a preocupação de o texto ser compreensível a um leitor comum, hoje. Temos de fazer uma tradução literal, mas não literalista, caso contrário torna-se incompreensível. Foi o primeiro trabalho.

 

E quem avaliou estas propostas?

A tradução apresentada é analisada por uma subcomissão do Antigo Testamento e outra do Novo Testamento, conforme os textos. Essa subcomissão começa por ver se a tradução tem nível. Já houve casos em foi rejeitada, em que voltou para trás a pedir uma nova tradução; noutros casos, pelo contrário, está muito boa.

Além dessa primeira análise, cada subcomissão faz um trabalho muito importante, que é de harmonização das diferentes traduções. Isso coloca-se, particularmente, em relação aos Evangelhos, porque há muitos termos comuns e não se pode traduzir uma palavra de determinada forma, em São Lucas, e de outra forma em São Mateus. Isso causaria uma confusão tremenda.

Este trabalho de harmonização foi um trabalho muito duro, longo, feito pelos três membros da comissão. Depois de se encontrar um texto mais ou menos harmonizado, um pouco mais compreensível, então o texto é entregue a uma pessoa especializada em Literatura Portuguesa; no caso dos Salmos, foi a um poeta; no caso dos Evangelhos, foi a uma professora universitária de Português. Eles examinam e têm em conta a dimensão do texto, enquanto é para ser proclamado, para ser lido, nas celebrações litúrgicas, na catequese, na disciplina de EMRC. Para nós é muito importante haver uma pessoa que cuida da musicalidade, digamos, do ritmo das frases, para que seja percetível e não cause confusões.

Depois disso, ainda passa pelo crivo de um liturgista, porque o uso principal é para a Liturgia e porque há termos litúrgicos que convém, de facto, que sejam conservados e outros que se possam mudar por serem mais adaptados à Liturgia. Tudo isso volta à tal subcomissão, para analisar todas as propostas, e depois tomam uma decisão. Há depois uma aprovação da Conferência Episcopal, não ainda de Roma, daí chamar-se experimental. De certo modo, é mais uma fase numa tradução tão perfeita quanto possível, porque uma das finalidades desta tradução é, exatamente, pedir o contributo dos leitores portugueses na própria tradução.

 

Agência Ecclesia/PR

Há uma dimensão comunitária que é própria do olhar católico sobre a Bíblia…

Eu sei que isso é muito perigoso: dizem que estamos, de certo modo, formatados em determinada linguagem, e queremos adaptar a esta a linguagem bíblica. É evidente que há expressões, há maneiras de falar, tipicamente católicas. Para nós, o que se tem de dar é o contrário: a Bíblia é que dá a norma. Evidentemente, se entre os católicos há determinada frase, determinada tradução, mas a Bíblia diz que é melhor outra…

Quer um exemplo? Estamos habituados – basta ler os Evangelhos – a ouvir esta expressão da boca de Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo”. Até agora traduzimos sempre assim, “em verdade vos digo”. Na nova tradução, vai aparecer “Amen vos digo”. E porquê?

Primeiro, amen é uma palavra portuguesa, de origem hebraica, que os autores que escreveram os Evangelhos, em grego, mantiveram na sua versão. A nossa pergunta é: quem somos nós para mudar uma palavra rica, que é muito difícil de traduzir do que numa simples expressão, porque diz muito mais do que “em verdade, em verdade vos digo”. Amen tem a ver com a fé. Se Jesus usa essa expressão, então nós optamos por manter essa palavra na sua originalidade, que é hebraica, mas que qualquer dicionário português já regista. O amen é uma palavra que até em linguagem profana…

 

Estamos perante um trabalho que ultrapassa a tradução, de educação do olhar sobre a Bíblia, para reconquistar o gosto pela sua leitura, redescobrindo o que lá está, originalmente? Por exemplo, a célebre parábola do Filho Pródigo é apresentada como a parábola do “Pai Misericordioso”…

Todos os títulos são da responsabilidade dos tradutores, não são, digamos assim, do texto original, que era chamado de “lectio continua”, em que nem sequer havia intervalos entre as palavras – era muito caro escrever e escrevia-se tudo ligado. É evidente que um título ajuda a perceber o conteúdo. Concretamente sobre essa passagem, o tradutor – e aceitamo-lo perfeitamente, porque hoje passou a ser um título comum – preferiu focar a figura do Pai, que é, sem dúvida, a figura principal, chamando-a parábola do Pai Misericordioso. Mas também já a vi ser chamada parábola da Festa, porque culmina nessa festa, mas isso já é interpretação de quem faz a tradução e escolhe um título que dá ao leitor, imediatamente, uma ideia sobre aquilo que depois vai ser traduzido, em seguida.

 

Há nesta nova tradução um desafio à comunidade, para que volte ao texto e ganhe o gosto pela leitura da Bíblia?

Esse é sem dúvida o objetivo principal, mesmo desta tradução experimental: colocar os cristãos a ler a Bíblia. Graças a Deus, o gosto pela leitura e a frequência com que se tem feito a leitura da Bíblia tem aumentado, hoje é comum. Seguindo as normas da Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, onde se faz um apelo para que a Bíblia chegue às mãos de todos cristão, o nosso objetivo é pôr os cristãos a ler os livros bíblicos, do modo mais acessível possível. De tal maneira que possam alimentar a sua fé, orientar a própria vida, a partir da Palavra de Deus. Esse é o objetivo principal que nos orienta.

 

Como estudioso da Bíblia, tem um olhar próprio sobre o que está em causa. Gostaria de saber como é que se chegou à tradução do prólogo do Evangelho de São João, “no início era a Palavra”. Qual é a intenção desta tradução do termo grego ‘logos’?

Esse foi dos pontos mais discutidos entre nós, de facto pusemos todas as hipóteses, até a de manter o termo grego, que é registado nos nossos dicionários. Para a maioria dos cristãos, “logos” não seria compreensível e exigiria imediatamente uma explicação, o que tornaria o texto pesado, pelo que foi posto de parte.

É uma versão experimental e estamos à espera de reações. Tenho dito e continuo a dizer: o biblista deve ser muito humilde e aceitar outras opiniões, que acabam por ter mais peso.

 

Porque é que se evitou a tradução por ‘verbo’?

Porque na aceção comum da língua portuguesa, verbo é um determinado género de palavra. Portanto, é limitativo. A questão vem do latim, em que se diz “verbum”, e as traduções, já muito antigas, eram, na sua maioria a partir da Vulgata. Adaptou-se a palavra “verbo”, que era literal, também existe em português, mas que é demasiado limitativa.

Depois de muita discussão, até com um biblista brasileiro, optamos pelo termo “palavra” e ver a reação, até porque é aquele que diz mais, embora não diga tudo. O “logos” grego é mais do que uma simples palavra, mas parece-nos que em português é a que melhor exprime a relação entre Jesus, como Filho de Deus, e o Pai.

Não quer dizer que seja definitivo, mas estamos com curiosidade em saber qual vai ser a reação.

Uma das questões que se punha, e pode parecer secundária, e foi discutida entre nós, é que muita gente diz: não pode ser “palavra”, porque se refere a um homem e palavra é feminino. É claro que Cristo é um homem, não há dúvida, mas também sabemos que Deus é Pai e também é Mãe, como a Bíblia também o apresenta. Será uma novidade.

Comparando com as traduções de outras línguas de origem latina, somos os únicos que optamos por “verbo”. É uma experiência.

 

O que é que motiva a apresentação pública desta nova tradução, envolvendo também a sociedade civil?

É evidente que a razão principal é a divulgação máxima da tradução. Depois, há o contributo que pedimos a todos os leitores, para melhorar a tradução que é proposta, é uma espécie de “orçamento participativo”, na linguagem de hoje; na linguagem da Igreja, falaríamos de uma participação sinodal, todos os cristãos têm ocasião de apresentar propostas.

Há um aspeto fundamental, que referi no convite ao presidente da República: a Bíblia é um marco incontornável na cultura portuguesa. É um património mundial, seguido sobretudo por duas religiões, o Cristianismo e o Judaísmo, mas os muçulmanos também referem figuras bíblicas, daí fazermos um convite ao representante da comunidade islâmica.

Também convidamos a ministra da Cultura, porque a Bíblia marcou e marca a cultura portuguesa, há muitas expressões que só entendemos conhecendo a Bíblia. Nesse sentido, também, queremos dar-lhe a máxima divulgação.

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