Como lhe hei-de chamar?

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

O acontecimento encontra-se ainda tão presente e o tempo tem sido tão acelerado que a urgência ensombra a lucidez para o adequado discernimento que importa realizar com a necessária lentidão do silêncio e a voz da oração.

Como lhe hei-de chamar? E o pronome «lhe» está ali em vez de muitos nomes. O «lhe» é plural na sua singularidade. Não se trata de uma simples forma de expressão, não. Verdadeiramente o «lhe» congrega uma pluralidade. São «lhes» este «lhe» e as palavras coram de vergonha quando pretendem adentrar-se na unidade desta multiplicidade plural.

A terra inteira canta e dança e a alegria do mundo concentrou-se em Lisboa. É a música da juventude compassada pela fé, criatividade e energia de quem acolhe e de quem vem de todos os cantos da Terra, para aqui chegar. De quem vem de perto ou de muito longe para chegar a Lisboa, chamado pela fé e o apelo do Bispo de Roma vestido de branco. Lisboa ficou «cidade do encontro» e tornou-se, por dias, a «capital do mundo» a gritar, a bater palmas, a cantar, a dançar e a rezar, nas veredas, nas ruas, nas praças e nos parques que até mudaram de nome, como na semana anterior já havia acontecido noutras ruas de cidades, vilas e aldeias de todo o Portugal. Caminhos e espaços da proximidade e das lonjuras, de países, línguas e culturas, de igrejas locais em plena liberdade e de igrejas perseguidas e de silêncio forçado, mas pujantes de fé.

Como lhe hei-de chamar, se o quadro é pintado pela fé de tantos? De quem acolhe e de quem é acolhido. E de quem, com dedicação, com espero, com entusiasmo, com fé, esperança e caridade, preparou o encontro. E são tantos! Desde o Presidente da Fundação JMJ, até ao mais humilde dos servidores municipais, passando por famílias de acolhimento e pelos milhares de voluntários, nacionais e internacionais, vestidos de amarelo. O «lhe» é, pois, a pluralidade de todos. E o encontro fez-se como se fez a luz nos primórdios da criação, em que tudo era jovem e bom.

O mensageiro vestido de branco chegou e a festa explodiu em plenitude. Trazia no coração a mensagem de que «Cristo Vive» e de que o Evangelho é alegria de todos e para todos, «todos, todos, todos». Da excelência da mensagem, também ela plural, tão rica nas dimensões e vertentes humanas como na simplicidade de a comunicar, será esta a expressão papal que mais terá ficado no espírito de muitos. Não será de admirar. Uma multidão de tantos milhares de jovens a gritar, entusiasta e a pedido do Papa, «todos, todos, todos» impressiona o mais empedernido dos corações humanos.

Que nome hei-de dar a esta assembleia juvenil que assim canta e reza, e grita também, em uníssono, a olhar para o futuro celebrando a fraternidade de «todos» numa Igreja universal, de «portas abertas» e sem «alfândegas», onde cada um é recebido como é? Como é, e com a consciência de que o «ser» deste «é», se é rico na diversidade de dons e carismas, é frágil na caminhada das veredas e que a «conversão» a Jesus Cristo nunca será perfeita e sempre se impõe, implacável, a necessidade do discernimento, a que Francisco continuamente apela e a que dedicou as catequeses durante as Audiências de Quarta-Feira, de Agosto de 2022 a Janeiro de 2023.

Todos sabemos que o entusiasmo humano dos grandes momentos traduzido por eloquentes palavras esbarra, depois, com as dificuldades do quotidiano que facilmente entorpecem a energia espiritual, mesmo quando soa, como música que embala o caminho, a palavra de Francisco no encontro com jovens universitários: «Tende a coragem de substituir os medos pelos sonhos: substituí os medos pelos sonhos, não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!» Na Universidade Católica como na Missa do Envio: «Gostaria de olhar cada um de vocês nos olhos e dizer: não tenham medo. Não tenham medo… Coragem, não tenham medo

Lisboa, a cidade do encontro e da graça, cidade da juventude e da universalidade, cidade do sorriso e da paz, cidade da fé e do amor, é também a cidade do envio, dos sonhos e da esperança. E também cidade da «Alegria do Evangelho».

Não esquecerei que as três primeiras Exortações Apostólicas do Papa Francisco possuem um nome comum na pluralidade das palavras latinas, a alegria. Uma, de 19 de Março de 2018, a «chamada à santidade no mundo actual» começa com o «Gaudete et Exultate» («Alegrai-vos e Exultai») do Evangelho de Mateus (5,12). Outra, de 19 de Março de 2016, começa com a «Amoris laetitia» («Alegria do Amor») canta o «amor na família». Outra, a primeira na ordem temporal, publicada em 24 de Novembro de 2013, sobre «O Anúncio do Evangelho no Mundo Actual», é a «Evangelii Gaudium» («A Alegria do Evangelho») que constitui uma espécie de rede de linhas programáticas para o Pontificado que então se iniciava. Valerá a pena lembrar o primeiro parágrafo: «A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos

Não deixarei de lembrar também a Exortação Apostólica «Christus Vivit» («Cristo Vive») dedicada «Aos Jovens e ao Povo de Deus», de 25 de Março de 2019, que começa com estas palavras: «CRISTO VIVE: é Ele a nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo! Tudo o que toca torna-se jovem, fica novo, enche-se de vida. Por isso as primeiras palavras, que quero dirigir a cada jovem cristão, são estas: Ele vive e quer-te vivo!»

Ignoro, naturalmente, se aqueles milhares de jovens, reunidos em Lisboa vindos de todos os países do mundo, leram alguma vez na íntegra esta Exortação Apostólica que lhe foi dedicada. Mas sei que eles deram testemunho de que «Cristo Vive» e está com eles.

Também não sei se alguma vez aqueles jovens leram a Exortação Apostólica «Evangelii Gaudium» que já vem de 2013. Mas sei que eles ouviram, com atenção e entusiasmo, o Papa que a escreveu e que ali a sintetizou, com simplicidade, vida e ternura de pai.

Aquela imensa assembleia de jovens reunidos em Lisboa, encarnou «Alegria do Evangelho» e foram para o mundo o «Evangelho da Alegria».

Guarda, 9 de Agosto de 2023

António Salvado Morgado

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