CIBERCULTURA – Será o caminho sinodal um subtil início do Vaticano III?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Em Setembro de 2022, o papa Francisco surpreendeu o mundo católico com o anúncio de uma segunda Assembleia dedicada ao caminho sinodal em 2024, para além da prevista para outubro de 2023 e se pensava ser a última. E a 13 de outubro de 2022, o P. Francesco Cosentino questionou no L’Osservatore Romano como questão em aberto isto não significaria — «Um Concilio Vaticano III?» — Ou seja, diz o P. Cosentino — «basta-nos o que o concílio vaticano II nos disse, escreveu e meteu em acção ou chegou o momento para desejar um concílio Vaticano III?» — Uma questão que deve ir para além da emotividade, levantada pelo P. Consentino por ocasião do aniversário em Outubro passado do Cardeal Carlo Maria Martini que levantou sempre questões profundas que subjazem muito ao espírito do caminho sinodal que estamos a percorrer juntos. Mas não é a primeira vez que li esta ideia de um Vaticano III.

Imagem de Simone Savoldi em Unsplash

Em 1985, John Zizioulas (1931-2023), Metropolita da Igreja Ortodoxa de Pergamon, que partiu no início deste mês e conhecido no mundo católico quando apresentou a Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, tem uma obra revolucionária (apesar de pouco conhecida em Portugal) que fala do “Ser como Comunhão” (Being as Communion). A um dado momento, Zizioulas reconhece que o Vaticano II introduziu a palavra “comunhão” na eclesiologia, mas afirma que existe ainda trabalho por fazer a esse respeito. Zizioulas escreve que — «o que podia ser feito- talvez por um Vaticano III — seria empurrar a noção de comunhão às suas conclusões ontológicas. Nós precisamos uma ontologia de comunhão. Nós precisamos de fazer da condição de comunhão, o próprio ser da Igreja, não o seu bem-estar, mas o seu ser.» Não é a comunhão, além da missão e da participação, uma palavra chave do caminho sinodal? Seguindo a intuição de Zizioulas, não é tanto a relação como mundo, ou a necessidade de actualizar a doutrina, ou a linguagem e as sensibilidades que poderia tornar o caminho sinodal num Vaticano III, mas a “ontologia da comunhão” como o modo da Igreja ser e estar no mundo.

Ontologia é uma palavra que expressa a “natureza do ser”, o âmago daquilo que nos caracteriza e informa os nossos comportamentos quando coerentes com o que somos. Assentar a tónica principal dessa ontologia na comunhão significa reconhecer como a relacionalidade faz parte daquilo que quer dizer “ser humano”. E como “comunhão”, o ser da Igreja não só se aproxima do ser de Deus que é Comunhão de Pessoas, como aproximaria o nosso modo de ser ao modo de ser do Universo que, como diria o Passionista americano Thomas Berry, é uma «comunhão de sujeitos, não uma colecção de objectos.» A sinodalidade significa um caminho que fazemos juntos na comunhão, sendo isso mais do que uma colecção de tópicos a actualizar na vida da Igreja. Porém, existe uma faceta da comunhão que estará cada vez mais presente no caminho que estamos a fazer juntos e que até agora tem sido pouco explorado: a comunhão digital.

Marshall McLuhan foi o católico que melhor compreendeu o novo mundo digital que estava a nascer, sendo mais conhecido pela sua famosa frase de que “o meio é a mensagem.” Porém, McLuhan encontrava em Jesus uma síntese única entre o meio e a mensagem, manifestada por uma encarnação que na era digital não possui os mesmos contornos. O caminho que fazemos juntos num momento da história humana onde os caminhos são, também, virtuais, exige uma versão des-incarnada do ser humano que McLuhan considerava «uma tremenda ameaça à Igreja incarnada, e os seus teólogos nem sequer a consideram digna de examinar» (Medium and Light, Wipf & Stock, 2010).

No ciberspaço, cada pessoa começa a tornar-se em informação, estendendo tecnologicamente a sua consciência, e se as nossas vidas começam a traduzir-se num formato espirito-digital, não quer isso dizer que nos aproximamos de uma só consciência global, uma só família humana? Essa era a esperança de McLuhan da comunhão digital. Nick Ripatrazone que escreveu um livro sobre isso, inspirado no pensamento de McLuhan, diz que — «Nós somos mais do que os nossos corpos. Online, somos todos alma.» Não sei o que Ripatrazone entende por alma, mas assumindo o significado bíblico de que essa é a totalidade do nosso ser, se online, somos todos a totalidade do nosso ser permanece, parece-me, uma questão em aberto. Contudo, uma questão pouco referida no meio de tantos outros assuntos mais polémicos, incluindo o próprio caminho sinodal.

Para algumas pessoas, como o Monsenhor Charles Chaput, bispo emérito de Filadélfia nos Estados Unidos, acham que o processo sinodal é descuidado e sujeito a manipulações. O bispo Chaput afirma ser falsa a necessidade da sinodalidade como uma característica permanente da Igreja e do seu povo. As críticas que faz ao modo de proceder do Papa não me parecem ter qualquer fundamento, nem interessam muito porque, diz Chaput, — «os Papas vêm e vão, como os bispos e qualquer cristão. O que fica e interessa é a fidelidade ao ensino Católico.» — Achei estranho. Pensava, como cristão, que o que fica e interessa é a fidelidade à nossa união com Deus. Ora, se tudo o que fizermos ao mais pequeno é a Jesus que fazemos (Mt 25, 40), e se quem vê Jesus vê o Pai (Jo 14, 9), o irmão com quem caminho é um caminho para o Pai, pelo que, posições de pessoas que partilham das mesmas ideias que o bispo Chaput, têm cada vez menos sentido.

Pensar se o caminho sinodal é um subtil início do Vaticano III é uma ligação marginal. O mais importante que já Zizioulas intuía há quase 40 anos é o movimento da Igreja na direcção de uma ontologia da comunhão. Mais fácil quando incarnada nos relacionamentos face-a-face. Mais difícil quando des-incarnada e vivida através dos meios digitais. Mas revolucionária quando posta em prática, seja em que (ciber)espaço for.


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