CIBERCULTURA – Do Grande Deslocamento teológico ao Grande “Realocamento”

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Que interesse tem a teologia para ti, independentemente de seres crente ou não? Quando estava horas a fio a medir no laboratório durante o meu Doutoramento, depois de ter lido tudo o que havia para ler sobre o meu trabalho, comecei a ler filosofia e teologia. Foi o momento em que me apercebi de como a teologia era um tópico fascinante porque tocava nas fronteiras últimas da relação entre ciência e religião, a crise ecológica, inteligência artificial e consciência, o sentido e significado das nossas origens, o fim último das nossas vidas e muito mais áreas onde antropologia, biologia, tecnologia e psicologia, entre outras, se entrelaçavam por via da espiritualidade que conduzia as disciplinas a uma unidade ímpar do conhecimento inspirado pelo desejo de nesse conhecimento, encontrar Deus. No ardor que sentia no peito ao ler um artigo teológico enquanto caminhava para o Metro, a teologia sobressaía-se como mãe que mantinha os filhos (disciplinas) unidos e a crescerem juntos. A teologia levava-me a um amor à sabedoria (filosofia) das coisas profundas onde Deus deixava de ser quem eu pensava ser, para se revelar como um amigo próximo e Mistério que me convidava a descobri-Lo através do entrelaçar de saberes. Por isso, foi com algum espanto que li no La Croix Internacional sobre o Grande Deslocamento da teologia nos Estados Unidos.

Jornadas de Teologia 2023 na UCP

Massimo Faggioli é professor no Departamento de Teologia da Universidade de Villanova nos Estados Unidos. Num artigo; de opinião conta que na Universidade Católica de Marymount, o corpo administrativo votou por unanimidade pelo corte de vários programas, incluindo o da Teologia que deixaria de ser oferecida como curso, mas apenas como uma das disciplinas em outros cursos. Faggioli reconhece que os programas de Teologia competem com cursos mais profissionalizantes, pelo que os programas de Teologia dirigem-se, essencialmente, a pessoas que tencionam dedicar-se à vida religiosa como sacerdotes ou consagrados, embora seja um curso aberto a todos. Por isso, a experiência relatada por Faggioli é a de um sistema de ensino de Teologia que está em crise e em Grande Deslocamento.

Apesar da difícil aceitação da Teologia no mundo Anglo-saxónico, as repercussões desta experiência, com a diminuição do número de vocações na Europa, poderá sentir-se no futuro próximo. Uma das tentações é a de atribuir o Grande Deslocamento da Teologia a um mundo cada vez mais secularizado. Porém, na opinião de Faggioli, embora a secularização possa ter um papel no Grande Deslocamento, existem razões mais fortes. Vivemos num mundo diferente onde a globalização é tecnocrática devido ao crescimento exponencial da presença de novas tecnologias nas mãos e casas de todos criando ambientes digitais onde as pessoas vivem. Viver nas nossas cidades e vilas depende muito do valor útil que damos ao que sabemos e aprendemos, sendo a opinião pública muitas vezes formada pela cibercultura partilhada nesses ambientes digitais. Sobretudo nas redes sociais, o convite a pensar nas questões de religião e fé parece cada vez mais irrelevante, sobressaindo o conflito pelas guerras de comentários, ou a criação de filtros-bolha que nos mantêm isolados na diversidade de opiniões. E mesmo se a presença salutar de leigos a leccionar e frequentar os cursos de Teologia poderia mostrar como essa área do saber não se restringe ao clero, se alguém soubesse que estás a tirar o curso de Teologia, o mais provável seria perguntar o que te deu na cabeça para enveredares pelo caminho da vida religiosa. Seria sempre um testemunho valioso, mas restritivo daquilo que pode ser o impacte da Teologia na cultura humana “tecnofílica” (amiga da tecnologia).

Deslocar é mudar de sítio, mas o cerne daquilo que se muda mantém-se o mesmo. Não creio que isso serve a Teologia. E quando estive a ver o programa da Licenciatura oferecido pela Universidade Católica, compreendi a razão de todas as disciplinas leccionadas por serem as básicas e fundamentais, como em Engenharia existem as propedêuticas, mas quando olhei para o Mestrado fiquei um pouco surpreso por não haver grande ligação com os desafios culturais da actualidade como, por exemplo, as questões ambientais (ecologia e vida digital), a Era Secular, a neuroteologia, a relação entre ciência e religião (via cosmologia e evolução natural), história e papel da pessoa humana no cosmos, vida e família (aborto e eutanásia), entre outras questões que dizem respeito à vida concreta das pessoas, onde a espiritualidade poderia/deveria ter um papel fundamental. Penso que o Grande Deslocamento se enfrenta com um Grande “Realocamento”. Realocar a Teologia seria destiná-la a um fim diferente do anterior. Na minha limitada opinião, o fim diferente seria repensar a Teologia para que se destinasse a todas as pessoas e às questões difíceis com que se confrontam, de modo a proporcionar uma oportunidade de conhecermos melhor o Mistério Último de Amor que permeia tudo e todos: Deus para o crente; e Realidade-que-tudo-determina para o não crente.

Algumas pessoas pensam que o trabalho da teologia é compatibilizar o pensamento filosófico e científico com o saber teológico, nomeadamente, com o Cristianismo. É como se a veracidade do Cristianismo do ponto de vista teológico dependesse dessa compatibilidade. Por isso, qualquer pessoa sente que pode colocar questões científicas ao teólogo, achando que este fica entalado (o que pode não ser bem assim), mas também o teólogo poderia colocar questões à cibercultura tecnocrática com base no saber teológico que tem e desenvolve. Sendo engenheiro e investigador científico, naturalmente que uma abordagem de teólogos como Wolfhart Pannenberg se sintoniza com o que despertou a minha atenção e fez desenvolver o meu gosto pela Teologia nos tempos livres entre duas medidas experimentais a realizar no laboratório. Pannenberg no seu livro (não traduzido) “Toward a Theology of Nature” (Na Direcção de uma Teologia da Natureza) dedica o primeiro ensaio a questões teológicas feitas aos cientistas. Questões que envolvem a contingência, a inércia, as irreversibilidades, a origem da percepção transcendente da realidade, a relação entre o que é temporal e o eterno na estrutura espacial física do universo, ou o futuro que o povo diz pertencer a Deus e que a ciência acha poder prever.

A minha referência a Pannenberg tem a ver com o domínio do conhecimento onde trabalho e no qual descobri como a Teologia pode ser apaixonante. A preocupação que senti ao ler Massimo Faggioli no La Croix Internacional foi sobre a questão que ninguém se coloca sobre o futuro da Teologia para lá da vida religiosa. Acredito que o Grande “Realocamento” é possível e desejável. Basta pensar nos jovens influencers que movem opiniões em massa com a sua opinião.

A sociedade cibercultural abriu um espaço sem precedentes na história humana onde a opinião do mais simples e pequeno tem lugar e pode tornar-se viral. Fala-se muito sobre Igreja na comunicação social, mas pouco se conhece sobre as respostas que a Igreja dá às questões “quentes” e onde o teólogo tem um papel fundamental, podendo abrir horizontes às visões curtas e abrir janelas quando os espaços parecem fechados. Existem muitos livros de divulgação científica, mas incrivelmente poucos de divulgação teológica, onde as questões que o mundo contemporâneo coloca encontram pistas de reflexão e transformação, propondo caminhos alternativos e entusiasmantes numa linguagem acessível sem comprometer a profundidade. Eu experimentei que a Teologia tem interesse, mas precisamos de teólogos que sejam líderes de opinião porque nos inspiram a agir.


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