Braga: Homilia de D. José Cordeiro na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

Deus ajoelha-se e lava os pés

  1. Em memória

Quando foi escrito o evangelho de João, provavelmente entre o ano 90 e 100 depois de Cristo, já se celebrava a Páscoa dos Cristãos. Jesus, ao celebrar Ele mesmo a Páscoa judaica com os seus discípulos na última ceia, mudou o sentido da Páscoa dos judeus. De facto, Jesus mudou a vítima, o cordeiro pascal, pelo seu próprio corpo e sangue, quando tomou um pão e o deu a comer dizendo: «isto é o Meu corpo que será entregue por vós». Seguidamente tomou o cálice com vinho e deu-o a beber dizendo: «este é o cálice do Meu sangue que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados».

Tudo teria ficado por ali se não tivesse dado este mandamento novo: «fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24.25). Por isso, a Páscoa dos Judeus celebra-se “em memória” da redenção divina da escravidão do Egito; a Páscoa dos Cristãos celebra-se “em memória” da redenção divina da escravidão do pecado.

  1. Deus ajoelha-se

Deus ajoelha-se aos nossos pés para os lavar. O Criador ajoelha-se aos pés da criatura. Jesus, ao lavar-nos os pés, olha-nos de baixo para cima. Ele é mestre no servir, com a palavra e o gesto, doando-se a Si mesmo. Assim acontece o sacramento dos sacramentos – a Eucaristia.

José Augusto Mourão escreveu: «Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra».

Antigamente, caminhava-se quase sempre a pé, sendo hábito de lavar os pés o primeiro gesto de hospitalidade. Tal gesto não era feito pelo senhor da casa, mas pelos seus servos, antes de se sentarem à mesa.

Atendamos aos detalhes e à novidade, segundo São João: Jesus levanta-se da mesa; tira as vestes e cinge-se com um avental; ajoelha-se em silêncio, lavando e enxugando os pés aos discípulos; Pedro interroga o Mestre, como sinal de estima, não suportando o seu abaixamento: «Senhor, Tu vais lavar-me os pés?»; Jesus responde a Pedro: «se não tos lavar, não terás parte comigo» e logo Pedro replica: «Senhor, então não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça»; Jesus responde não, basta assim, «vós estais limpos».

Jesus quer lavar os pés a todos. A Igreja, na sua sabedoria, oferece-nos depois do Batismo, o sacramento da Reconciliação ou Penitência, «para nos tornar limpos e prontos a hospedar Jesus que, na Eucaristia, bate à porta do nosso coração para ser acolhido» (A. Cànopi).

  1. Lavar os pés uns aos outros

Os discípulos chamam Mestre e Senhor a Jesus e dizem bem. Todavia, não se trata de títulos, como acontece no mundo, mas de serviço: «se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros». Jesus não disse: “também vós deveis lavar-me os pés”, mas lavar os pés uns aos outros. Também aqui não se trata de realizar qualquer serviço, mas de fazer da própria vida um serviço, de doar a vida pelos outros.

Hoje, o que significa lavar os pés uns aos outros? Servir e amar o próximo com uma autêntica caridade; rezar por todos e uns pelos outros; dizer bem dos outros.

Posso-me perguntar no silêncio orante: Sou humilde? Digo bem dos outros? Penso bem dos outros? Faço aquilo que interessa a todos ou aquilo que me interessa?

A propósito há uma bela página da carta de São Paulo aos Romanos: «Que o vosso amor seja sincero. Detestai o mal e apegai-vos ao bem. Sede afetuosos uns para com os outros no amor fraterno; adiantai-vos uns aos outros na estima mútua. Não sejais preguiçosos na vossa dedicação; deixai-vos inflamar pelo Espírito; entregai-vos ao serviço do Senhor. Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração. Partilhai com os santos que passam necessidade; aproveitai todas as ocasiões para serdes hospitaleiros. Bendizei os que vos perseguem; bendizei, não amaldiçoeis» (Rm 12, 9-14).

A Eucaristia evangeliza por ela mesma na nobre simplicidade e beleza da sua celebração e, a partir desta, numa vida com total gratuidade, fazendo da própria vida um serviço de amor, isto é “viver Cristo”, ao partilhar o pão e alimentar a esperança aos outros, reconhecendo’O ao partir do pão e reconhecermo-nos como Corpo de Cristo-Igreja.

«O gesto da fração, praticado por Cristo na última Ceia, e que serviu para designar, nos tempos apostólicos, toda a ação eucarística, significa que os fiéis, apesar de muitos, se tornam um só Corpo, pela Comunhão do mesmo pão da vida que é Cristo, morto e ressuscitado pela salvação do mundo (1Cor 10, 17)» (IGMR 83).

+ José Manuel Cordeiro

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