A redução da barriga e a ginástica da alma

Henrique Matos, Agência ECCLESIA

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Estamos ainda a acertar o passo com um tempo novo que a celebração do dia de cinzas nos trouxe. Todos os anos a proposta é abrupta, do excesso à frugalidade, num par de horas.

O costume vem de longe, enquadra-se numa proposta religiosa e cada vez mais tende a ser racionalizado numa panóplia de argumentos esclarecidos. Que o peixe fica mais caro que a carne e que a diferença pode ser dada aos pobres; que o valor reside na atitude interior de cada um, que o ritualismo nada acrescenta, que é um costume dos antepassados que importa atualizar aos tempos, enfim, práticas que parecem não favorecer quem deseja habitar a vanguarda dos tempos.

Esta superioridade intelectual tende a olhar com condescendência aqueles que ainda militam nas “práticas antigas”, limitados por uma ignorância que não ultrapassaram ou, simplesmente, pela confortável inércia que se limita a replicar e “cumprir o preceito” que sossega a consciência.

É hoje muito fácil edificar uma “ética à medida” que assente na perfeição a uma circunstância de vida que agrada, evitando assim a “penitência” de seguir por outro caminho.

Curiosamente, a par desta relativização das abstinências e jejuns religiosos, florescem teorias que sugerem rigorosamente o mesmo, mas com uma finalidade diferente. O objetivo não é agora o de facilitar o nosso relacionamento com Deus ou de nos libertar do supérfluo, mas o de impactar o próximo por intermédio de uma nova “religião” que promove o “bem-estar” e os atributos físicos como “caminho de salvação”.

Qualquer pesquisa despreocupada na internet nos revela que afinal o jejum está na moda e é sugerido em doses que envergonham qualquer recomendação quaresmal. Deve ser intermitente e regular, não à mercê de tempos litúrgicos, mas dos 365 dias do ano. Também este é purificador, não de culpas ou pecados, mas de toxinas. E os fiéis desta fé na saúde e nos bíceps, estão dispostos a uma austeridade capaz de fazer corar estilitas e anacoretas. Basta ver a enormidade de calorias que se gastam às primeiras horas do dia, em passadeiras, bicicletas ergométricas, elípticas ou halteres. Não há nisto penitência e sacrifício? Sem dúvida, e tal, é hoje assumido como essencial para se atingir o “homem novo”, não o de S. Paulo obviamente, mas o das formas definidas e da saúde de ferro.

Paradoxo? Talvez, mas na verdade, neste terceiro milénio de nativos digitais, permanece a mesma disponibilidade para o jejum, a abstinência e a penitência. A diferença é que hoje, a redução da barriga parece ser mais importante do que a ginástica da alma.

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