A realidade que o sonho amazónico pode despertar

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O Papa não teve apenas um sonho, mas vários. Na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal ”Querida Amazónia” partilha-nos quatro sonhos: o social, o cultural, o ecológico e o eclesial. Todos os sonhos estão interligados, como interligada está a própria natureza humana e a física associada ao ambiente que nos rodeia. Gostaria de reflectir sobre alguns dos seus aspectos.

No sonho social

«se queremos dialogar, devemos começar pelos últimos. (…) [São] os principais interlocutores, dos quais primeiro devemos aprender, a quem temos de escutar.» (QA, 26)

Os últimos serão os primeiros (Mt 20, 16) a dar voz quando ampliamos o nosso olhar, focando menos naqueles que escutamos por serem as estrelas da comunicação social, e procurando mais os que têm menos tempo de antena. Talvez sejam os que estão ao nosso lado, e nos cruzamos todos os dias.

O Papa fala dos povos indígenas, mas com a massificação social na era das selfies, likes e afins, sem nos darmos conta, tendemos a uma uniformização no modo de ser e estar. Por isso, os simples e que vivem sem os entretenimentos que se impõem através da conectividade permanente online, de certo modo, mantêm a sua identidade em desenvolvimento natural e têm algo a ensinar-nos. Não se trata de um retorno ao passado, mas do reconhecimento de que a nossa diferença traz valor ao mundo e à cultura, que é segundo sonho do Papa.

No sonho cultural

«diante duma invasão colonizadora maciça dos meios de comunicação, é necessário promover para os povos nativos comunicações alternativas, a partir das suas próprias línguas e culturas, e que os próprios indígenas se façam protagonistas presentes nos meios de comunicação já existentes.» (QA, 39)

Com a maior capacidade da humanidade em comunicar, nunca como antes houve a hipótese de uma verdadeira ”interculturação”, isto é, de um enriquecimento recíproco entre as culturas. Mas a diferença que uma interculturação gera deve-se a um pequeno, mas significativo acrescento ao acto de comunicar: comunicar-se.

A intercultura acontece quando nos damos a nós mesmo aos outros. Mas, para isso, não podemos ser todos iguais. Pois, em cada pessoa, povo e cultura existe algo que os torna únicos. Depois, quando nos comunicamos através dos meios disponíveis, damos uma oportunidade aos outros de reconhecerem a sua unicidade ao confrontar-se com a diferença. E até parece que não há nada mais diferente do ser humano do que a natureza que o rodeia, mas será verdade? Daí o terceiro sonho.

No sonho ecológico

Diz o Papa Francisco que a «vida diária é sempre cósmica» (QA, 41). De facto, cada dia é pautado pelas melodias da natureza que nos circunda, muitas vezes abafadas pelos ruídos de fundo da nossa pressa e aceleração. Por isso, o Papa continua a insistir na visão de que tudo está interligado (QA, 41). E, por outro lado, que «o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis» (QA, 42). Mahatma Gandhi dizia «Tu e eu somos uma coisa só. Não posso maltratar-te sem me ferir.» O Papa amplia o significado desta frase à relação entre nós e a natureza e isso é significativo em experiências como no caso dos japoneses.

Há muitos anos que no Japão se criou uma prática das pessoas banharem-se na floresta, que em japonês junta as palavra shinrin (floresta) com yoku (banho). A Arte de Shinrin-Yoku não se refere a fazer exercício, corridas ou caminhadas, mas de um simples estar na natureza, conectando-nos a essa através dos nossos sentidos, abrindo-os para construir uma ponte entre nós e o mundo natural. Num mundo em que 2/3 da população vive em espaços urbanos, e desse grupo de pessoas, 93% passa a maior parte do seu tempo entre quatro paredes, os benefícios do sonho ecológico tornam-se fundamentais para a nossa saúde física e mental. Mas há uma outra prática que pode tornar-se uma profecia dos tempos modernos.

A profecia da contemplação

«Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque a constante distracção tira-nos a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito. (…) Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem.» (QA, 53-54)

O convite é muito claro. Ainda que o Papa Francisco nos diga que «podemos contemplar a Amazónia, e não apenas analisá-la (…) podemos amá-la, e não apenas usá-la» (QA, 55), poderíamos colocar no lugar da palavra “Amazónia” qualquer ponto do planeta onde a natureza se manifesta diante dos nossos olhos.

O acto de contemplar é semelhante ao que acontece na prática do shinrin-yoku. É um simples estar em que «podemos sentir-nos intimamente unidos [à natureza]» (QA, 55) fazendo com essa uma experiência de maternidade natural que desperta a nossa consciência para o facto de fazermos parte dela e não sermos uma espécie à parte dela. E a razão desta contemplação do mundo é simples.

«Porque se contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres.» (QA, 55)

Só quando reconhecemos estes laços podemos alguma vez aspirar a exercer a vocação última que Deus nos confiou de elevar o mundo até Ele. Daí o convite do Papa Francisco a que

«Despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objecto de uso e abuso sem escrúpulos. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração.» (QA, 56)

É semelhante a uma visão comuniocêntrica da relação entre pessoa e natureza que em tempo propus num artigo; publicado na revista Communio.

O mundo natural contemplado pode tornar-se um espaço de descoberta da nossa união e relação com Deus, e de O compreender um pouco melhor. Pois, a presença de Deus manifesta-se em cada dinâmica ecológica que nos rodeia. Isso exige uma mudança de mentalidade e criação de novos hábitos. Não é fácil sairmos da nossa zona de conforto urbano, mas isso faz parte do último sonho, o sonho eclesial.

No sonho eclesial

«Os povos aborígenes podem ajudar-nos a descobrir o que é uma sobriedade feliz. Sabem ser felizes com pouco, gozam dos pequenos dons de Deus sem acumular tantas coisas, não destroem sem necessidade, preservam os ecossistemas e reconhecem que a terra, ao mesmo tempo que se oferece para sustentar a sua vida, como uma fonte generosa, tem um sentido materno que suscita respeitosa ternura.» (QA, 71)

Muitos dos nós que habitamos nos espaços urbanos precisamos de apreciar a sabedoria daqueles que vivem uma relação profunda com a natureza. O consumismo que nos leva a elevados níveis de ansiedade e isolamento digital precisa desta reeducação que uma prática contemplativa da natureza nos oferece.

É verdade que, por vezes, cobram-nos para visitar espaços naturais de beleza extraordinária, mas o mundo natural que podemos contemplar é muito mais do que esses espaços. Há muitos espaços naturais onde podemos fazer uma experiência de interconectividade e interdependência reais, e não digitais. O Papa Francisco chega mesmo a introduzir algo que um maior relacionamento com a natureza pode suscitar em nós: uma espiritualidade da gratuidade (QA, 73). Uma espiritualidade onde o acto de admirar se torna sagrado porque desperta em nós um amor à vida impensado. Recordo aquela avó; que evitando o desejo de eutanásia do seu pai, leva-o a redescobrir o valor da sua vida com um banho de Sol.

A dimensão eclesial de um novo relacionamento com a natureza abre as portas das igrejas além dos espaços de culto, e amplia o espaço eclesial a todo aquele em que

«…esta relação com Deus presente no cosmo se torne cada vez mais uma relação pessoal com um “Tu”, que sustenta a própria realidade e lhe quer dar um sentido, um “Tu” que nos conhece e ama» (QA, 73)

Um “Tu” que no íntimo de um pedaço de matéria na forma de pão quer chegar ao nosso íntimo (QA, 82) para nos cristificar. E, transformados pela Eucaristia, sendo outros Ele, esperar que, chegando ao fim da nossa viagem pela vida física, quando a Terra nos consumir, sejamos gérmen de transformação do cosmos num novo Céu e nova Terra, que só Deus pode imaginar e tornar real.

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