A Humanidade do Padre

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Não pude deixar de refletir, por estes dias, na condição sacerdotal atual. Primeiro tolhido e abatido pelo número de padres que têm falecido. Não há semana em que a Ecclesia não noticie a morte de um sacerdote e há semanas em que temos um óbito de um padre todos os dias. Há uma geração de sacerdotes, que deixou uma marca indelével na Igreja e na sociedade, que está a partir. Não podia ser mais premente o apelo do Evangelho aqui há uns tempos atrás, não para se acordar Deus ou se dar um puxão de orelhas ao Espírito Santo, mas para despertar todos e cada um para a sua vocação e para a necessidade de dar mais: pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara. Em segundo, refletindo em dois apelos importantes: um vindo de D. Vitorino Soares, para que as comunidades cuidem dos seus pastores e os pastores também cuidem uns dos outros, e se rezasse pelos pastores que andam mais abatidos, desiludidos e cansados; outro vindo de D. António Luciano, pedindo aos padres que tenham uma vida interior séria e com profundidade espiritual.

Todos estes apelos são bem-vindos e têm razão de ser, há que rezar pela santificação dos sacerdotes, mas, hoje, mais do que nunca, é preciso primeiro cuidar da humanidade do padre. O baixo número de vocações está a levar a que os padres assumam muitas paróquias e se multipliquem por um sem número de atividades e ações. Ainda vigora o “padrocentrismo” em muitas paróquias. Tudo se faz com o padre e nada se faz sem o padre. Exige-se a sua presença em todo o lado. Por outro lado, o estatuto do padre mudou. Já não tem a autoridade de outros tempos. Ainda é ouvido, mas depois cada um faz o quer e deixa o padre a falar sozinho. Parece que anda a pregar para surdos, salvo seja. No meio deste relativismo, o padre sente-se um pouco perdido e com um trabalho muito mais dificultado, o que não deixa de ser um grande desafio. Mas, por outro lado, muitas pessoas ainda procuram o padre, porque vivem num turbilhão de dúvidas, incertezas, angústias, dificuldades, vazio existencial e desnorte moral e espiritual, que a sociedade atual oferece, e a voz do padre ainda é valorizada.

Temos uma formação vincadamente humana, intelectual, moral e espiritual, centrada na liturgia e na pregação, mas quando chegamos às paróquias percebemos que temos de ter alguma plasticina, moldada pelo engenho e pela carolice de cada um: ser secretário, burocrata, empreiteiro, cozinheiro, dono de casa, sacristão, maestro, assistente disto ou daquilo.  Como se isto não chegasse, ultimamente ainda lhe arranjaram o cargo chique de ser presidente de centros paroquiais. Muitos párocos aceitam, porque assim também mandam as regras, dá poder e visibilidade social, mas acho que os padres não são ordenados para serem presidentes de centros paroquiais, para o qual não tiveram nenhuma formação ou muito pouca. É um cargo com alguma exigência. No meio desta azáfama toda, pergunta-se: o padre ainda terá tempo para ser padre? É ordenado para ser padre e depois é quase tudo menos padre. Certamente que deve dar o seu contributo no campo social e no serviço às instituições, mas não deve ser o padre a liderar. Há leigos com formação neste campo, que perfeitamente podem ocupar o cargo. O trabalho de «funcionário» das paróquias e da Igreja, infelizmente, traz muito prejuízo para a vida espiritual e para a disponibilidade que o padre deve ter para os outros como padre. Duvido que agendas sobrecarregadas, com muitas atividades, reuniões e ações, façam dos padres bons padres.  Há um excesso de preocupação pelo fazer e não pelo ser e estar, que é o fundamental da vida de um padre. Até o povo já se habituou a comentar que «o senhor padre tem muito que fazer e, coitado, anda tão cansado». Quem me liga para o telemóvel, já me vai dizendo muitas vezes “desculpe incomodá-lo, que o Senhor deve ter muito que fazer”. Se assim é, alguma coisa não está bem na vida do padre atual.

Ser padre exige alguma prudência, equilíbrio e humildade, para não se cair no vedetismo, que é sempre uma tentação. O padre indica, deve apelar sempre e ser ponte para algo muito maior do que ele: Jesus Cristo. Na Igreja, o centro das atenções é Jesus Cristo e não o padre. Mete-me alguma confusão e impressão ver padres armados em vedetas e nas paróquias grupos de pessoas alinhados com certos padres e com outros não, ou multidões dominicais com uns padres e desertos com outros. São sinais evidentes de grande superficialidade e imaturidade cristã. O padre que é vedeta, com agenda e objetivos pessoais, é um mau padre, e uma comunidade que se centra muito no estilo do padre, é uma má comunidade. Uns têm mais talentos do que outros e alguns serão mais apelativos do que outros, mas uma boa comunidade cristã e um bom cristão centra-se em Cristo e não no padre que tem.

Mas o que mais refleti, já embalado pela vintena de anos do meu sacerdócio, foi o encontro com a minha pobreza e a minha fragilidade no exercício do sacerdócio. Julgamos que vamos ser sempre jovens e que vamos ter sempre novidade, criatividade e frescura espiritual e pastoral para dar e vender, mas não é bem assim. O encanto por ser padre e servir Cristo e a Igreja não se perdeu, mas vive-se na fragilidade da nossa humanidade. Construímos a imagem de que o padre é quase o senhor todo perfeito, um anjo de Deus na terra, sem defeitos, sem dificuldades, sem problemas, sem angústias e sem dúvidas. Não tem dramas, nem complexos, muito menos vícios e manias. Tem bons conselhos para tudo e todos, possivelmente viverá sempre uma vida espiritual elevada, nunca perde o equilíbrio e nunca precisa de ajuda, está capacitado para ter uma performance quase perfeita. O padre é encarado como um ser extraordinário que vive quase incólume ao que os outros experimentam. Um padre sem humanidade. Lamento, mas este padre não existe. Aquela imagem faz até com o padre se sinta pressionado e passe algum tempo a esconder os seus medos, as suas fragilidades e as suas angústias, porque o padre tem de ser sempre imperturbável, forte e certinho, não pode ser fraco ou manifestar fraqueza. Nada mais ilusório e desumano. O padre também falha, erra, engana-se, chora, sofre, ri, cora, irrita-se, treme e distrai-se, adoece.

Há que assumir a nossa humanidade. As comunidades cristãs têm se habituar a gostar do padre que têm, um ser humano com as suas virtudes e os seus defeitos, a não se limitarem só a exigir, sem olhar à fragilidade e limitação do sacerdote que as serve. E o padre não ter medo de mostrar o que é e o que vive, confessando-se de vez em quando à comunidade, para também ser ajudado e não viver no drama de alimentar falsas imagens e recusar a sua humanidade, na unicidade e especificidade de cada um.

E, por favor, façam-me um obséquio: não me falem mal dos padres velhos por serem velhos. Quem não vai para velho? As comunidades cristãs, e a Igreja em geral, não podem querer só a parte melhor das pessoas, o seu tempo de maior vigor e criatividade, e depois quererem facilmente arrumá-las, como se já não tivessem qualquer valor. Os critérios da Igreja não são a produtividade e a eficácia, mas o amor e o serviço. As pessoas devem ser sempre amadas e respeitadas, acolhidas na sua mais pura humanidade, independente do que fazem e produzem. A igreja, primeiro que tudo, tem de ser uma casa de humanidade.

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