A Bíblia diz que Deus não existe – Acerca da polémica sobre a Carta de S. Paulo aos Efésios

Padre Mário Sousa, coordenador da Comissão da Tradução da Bíblia

«Deus não existe». Por incrível que pareça, esta é uma proposição do Salmo 53,2b. Assim, é possível que alguém diga que a Sagrada Escritura afirma a não existência de Deus.  À primeira vista não estaria a mentir, pois basta abrir qualquer Bíblia para constatar que, de facto, a frase lá está. Mas também lá se encontra a sua introdução, que afirma: «Diz o ímpio no seu coração:» (Sl 53,2a). Mais do que uma mentira, seria uma manipulação desonesta e até perversa. Quando a uma frase se rouba o seu contexto, é muito fácil distorcê-la ao ponto de, inclusivamente, lhe dar o sentido contrário daquilo que pretende afirmar.

Vem isto a propósito da polémica construída a partir de uma frase da Carta aos Efésios (capítulo 5), lida nas missas do passado domingo. Também ela foi tirada do seu contexto, de modo a fazer S. Paulo dizer exatamente o contrário do que, de facto, afirmou.

No tempo de Paulo, a mulher contava muito pouco, a ponto de ser considerada uma propriedade que passava de um dono (o pai) para outro (o marido). Ora, é a pessoas geradas nesta cultura que o apóstolo escreve.  E não o faz apenas a respeito da relação do marido com a mulher (5, 22-33), mas também da relação de filhos e pais (6,1-4), e dos senhores com os seus escravos e vice-versa (6,5-9).  Paulo recorda aos destinatários da sua carta que todos estes relacionamentos ganharam uma nova e revolucionária dimensão à luz da fé em Cristo. O batismo rompe todos estes estereótipos culturais e introduz o crente numa nova forma de viver, que está resumida nas palavras do apóstolo que abriam, precisamente, a leitura do passado domingo, que tanto brado deu:  «Submetei-vos uns aos outros no temor a Cristo» (5,21). A fé em Cristo constrói uma nova cultura: a do amor – segundo o exemplo de Jesus – e não a do domínio e da subjugação do outro. Subjugar-se e não subjugar:  todos se devem submeter ao e no amor. Mas Paulo é explícito: todos e não apenas alguns; na vida cristã e também na matrimonial não há lugar para subjugadores! Por isso, depois de falar do submeter-se no amor das mulheres em relação aos maridos, Paulo fala – e que revolucionário é! – do submeter-se  no amor dos maridos em relação às mulheres: «Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela» (5,25). Ou seja, entregando-se sem reservas ou egoísmos, submetendo-se ao seu bem e à sua felicidade. Dando a vida por elas, como Cristo pela Igreja!

Que progressista foi Paulo – na senda de Jesus – , ao afirmar uma tal coisa numa cultura em que os judeus mais ortodoxos rezavam: «Obrigado, Senhor, por não me teres feito mulher». E por isso, o apóstolo termina a fundamentação bíblica do que afirma, com uma frase do livro dos Génesis que proclama a igualdade do marido e da mulher: «Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne» (5,31; cf. Gn 2,24). Ou seja, não há lugares para duas personalidades que se impõem ou subjugam, mas para um único projeto de vida, que, pelo amor recíproco, faz com que os dois se tornem um só.

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