1.º de Maio: «Não encontramos muitos movimentos na Igreja que tomem a sério a vida dos trabalhadores» – padre Horácio Noronha

O padre Horácio Noronha, antigo assistente da Liga Operária Católica, é o convidado da Renascença e da Ecclesia, nesta semana, evocando o histórico 1.º de Maio de 1974

Foto: Agência ECCLESIA/OC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Que memórias guarda do 1º de Maio de 74, daquela grande manifestação?

Nessa altura vivia em Lisboa, estava como assistente nacional da JOC e, portanto, participei com grande alegria, com grande empenhamento nessa manifestação do 1º de Maio.

 

Também saiu à rua?

Sim, saí à rua, andei por aí e tenho muito boas recordações. Foi uma festa, uma festa enorme, com toda a gente a festejar, com bandeiras, a editar slogans. Foi, realmente, uma comemoração muito festiva e, digamos que, unitária. Toda a gente, não havia divisões, estavam todos unidos. Foi, para mim, uma grande alegria.

 

E como foi viver aqueles primeiros tempos em que tudo se questionava e em que também era necessário, a dado momento, apelar à serenidade?

Foram momentos, assim, muito estimulantes, porque eu trabalhava com a JOC, já desde 1969 e, portanto, havia dentro dos militantes da JOC e dos seus dirigentes um grande desejo de que isso acontecesse. Não se sabia como, mas que acontecesse uma mudança, no nosso país. Vivíamos, tínhamos várias experiências de falta de liberdade, como, por exemplo, na censura do jornal, como a procura de certas publicações, como certas reuniões que eram também, sabíamos que eram vigiadas, tudo isso. De modo que foi, assim, uma grande alegria, um grande alívio, uma grande festa também, essa passagem do dia 24 para o dia 25 de Abril.

 

Falou do papel da JOC. Sabemos que os movimentos juvenis foram muito importantes para abrir caminho ao que foi a mudança de regime, pelo menos do ponto de vista cultural e de pensamento. Que papel é que estava destinado aos movimentos católicos e, particularmente, aos jovens operários católicos, neste contexto de mudança?

No contexto de mudança, eu acho que tiveram um papel importante, inclusive nessa altura a JOC era muito solicitada pelos meios de comunicação, normalmente pela televisão, para entrevistas, porque percebiam que na JOC havia certas sementes que tinham a ver com este mundo novo que estava a despontar. E havia pessoas muito empenhadas que, depois também, se implicaram noutras áreas, sobretudo a nível sindical, a nível associativo, nalguns casos também a nível político. Foi uma passagem muito importante, que nós vivemos todos com muito empenhamento e com muita alegria.

 

Chegados aqui, 50 anos depois do 25 de Abril, o 1.º de Maio tem de ser sempre um dia de festa, de comemoração, mas também de luta por direitos que são essenciais à dignidade dos trabalhadores?

Quer dizer, o 1º de Maio, por tradição, é celebrado mais como um dia de festa, um dia celebrativo, desde aquele 1º de Maio inicial, que foi a propósito da reivindicação dos operários de Chicago, em 1886, e que depois foi assumido como uma celebração mundial, alguns anos depois – mais tarde também pela Igreja, que se associou a esta festa dos trabalhadores, instituindo a festa de São José Operário, no dia 1 de maio.

 

Há questões que, se calhar, são mais lembradas nesse dia, até pela origem da celebração, mas que estão no dia a dia de todas as pessoas, questões dos direitos laborais, da necessidade de trabalhar pela dignidade dos trabalhadores…

É verdade, que sendo um dia de festa, é também um dia em que não ficam esquecidos os problemas dos trabalhadores. Hoje ainda se vivem muitos problemas que se viviam naquele tempo, quando isto começou. Por exemplo, hoje vive-se muita precariedade no trabalho, o desemprego, há pessoas que trabalham e são pobres, há as más condições de trabalho, os salários baixos, mais recentemente tudo o que vem do teletrabalho, da inteligência artificial, são realidade novas e que questionam a vida dos trabalhadores. Eles também têm alguma palavra a dizer quanto a isso, e de facto dizem.

 

Essa questão dos trabalhadores pobres, cerca de 10% dos trabalhadores em Portugal serão pobres, é das mais preocupantes da realidade atual do trabalho?

Não sei se será a mais difícil, é uma das difíceis, porque há muitas outras que também são difíceis e complicadas. Essa é uma realidade difícil que nos questiona, questiona a todos, a Igreja também, também intervém nessa área, procurando em especial uma ajuda fraterna àqueles que mais precisam. Essa ajuda também põe alguns problemas…

 

Foto: Agência ECCLESIA/OC

Está preocupado com o teletrabalho?

Olhe, na história da vida dos trabalhadores, passou-se por situações que têm a ver com esta. Quando foi o início da era industrial, os trabalhadores aceitaram muito mal a introdução das máquinas nas fábricas, porque isto ia tirar postos de trabalho. Depois veio a verificar-se que, afinal, a máquina não era uma coisa má, mas era até um auxílio muito importante para o trabalho operário. Hoje, o teletrabalho tem interpretações diferentes. Há pessoas que apreciam, por exemplo, pessoas que trabalham em casa sentem-se bem, gostam, preferem, mas há outras pessoas que não gostam, sobretudo porque as priva do convívio com os outros trabalhadores, porque é um trabalho mais isolado, a pessoa está só.

 

E dificulta mais o direito a desligar, não é?

Exato.

 

Tem acompanhado há décadas, como falamos, os movimentos operários da pastoral desde a Juventude Operária Católica, agora durante muito tempo a Liga Operária Católica-Movimento dos Trabalhadores Cristãos. Como tem visto a atenção destes movimentos, estas realidades em mudança? Sente que esta vigilância permanente é bem acolhida pelo resto das comunidades católicas?

Sim, tenho acompanhado. Fui assistente nacional primeiro da JOC, depois também fui da LOC, no princípio deste século. Agora que a LOC está sem assistente nacional, porque o último assistente faleceu há cerca de dois anos, pediram-me para fazer aquele acompanhamento possível. O que eu verifico é que estes movimentos vão também acompanhando a evolução que se passa no mundo de hoje, e os problemas que existem, nomeadamente no mundo do trabalho. Não são os mesmos que existiam há anos.

No fundo, há uma realidade que permanece, mas há necessidade de ir acompanhando a evolução dos tempos. Hoje, o trabalho da LOC e os objetivos da LOC centram-se muito na dignificação do trabalho, um trabalho digno. Quem dá dignidade ao trabalho é a pessoa, do trabalhador, mas também é necessário que haja condições dignas do trabalho, como eu referia há pouco, a questão dos empregos, as más condições, os salários, etc.

 

Relativamente à questão da dignidade do trabalho, recentemente o bispo de Setúbal, o cardeal D. Américo, alertava para uma realidade “dura e cruel”, nas suas palavras, vivida pelos mariscadores, na Diocese. Esta realidade de trabalho precário, por vezes escravo, é quase sempre associada à imigração. Há muito a fazer na defesa destas populações desprotegidas?

Com certeza. Quanto à imigração, eu vejo duas faces do problema: um é o bom acolhimento que se deve fazer aos imigrantes, quer ao nível das relações pessoais, quer ao nível mesmo da legislação, ao nível das empresas… há muita coisa negativa. Por outro lado, é um problema mais de fundo, seria importante criar nos países de origem desses imigrantes condições para que eles pudessem lá ter trabalho e um trabalho digno também. Esse é um grande problema que não é novo, mas que permanece e é importante.

 

Padre Horácio tem falado de muitas coisas que permanecem: Celebramos os 50 anos do 25 de Abril, e já nos falou do trabalho que já fazia antes com instituições católicas nesta área da pastoral operária, e eu quero perguntar-lhe se, particularmente nos anos antes da Revolução, se esse esforço, se essa visão, por exemplo, da juventude operária católica era bem vista por toda a gente, ou se essa reflexão que era feita em contexto do movimento operário católico não criava também alguma tensão?

Sim, sempre houve um pouco de tudo, mas a JOC, quando apareceu, nos anos de 35, era um movimento que correspondia a uma necessidade que todos sentiam, e por isso teve uma grande aceitação. Não digo todas as paróquias, mas uma grande maioria das paróquias tinham grupos de JOC.  Numa certa altura, nos anos 60, houve um grande encontro da juventude em Lisboa, e esse encontro manifestou talvez duas faces do problema. Nessa altura era Salazar que estava no governo, e ele queria impedir a realização desse encontro. E o cardeal Cerejeira disse-lhe que, quem tocar na JOC, toca na Igreja, de modo que são duas posições contrárias. Na prática, havia sempre aqueles que aceitavam com gosto, outros que nem por isso, e alguns achavam que lutar pela justiça, pela liberdade, etc., que era assim quase contrário ao espírito cristão, ao espírito evangélico; alguns diziam que eram os comunistas. Uma falta de compreensão do que é a ação libertadora do Evangelho, do que o Evangelho propõe. O Papa Francisco, ainda há pouco tempo, falou na questão do trabalho digno, e dizia não ao abuso do trabalho precário, promovendo o adiamento das escolhas da vida dos jovens.  Ele, em muitas outras ocasiões, tem falado nisso, especialmente na Fratelli Tutti, mas já antes, desde a Rerum Novarum, por aí fora, a Igreja tem uma série de documentação muito abundante sobre os temas de trabalho, só que depois, na prática, é mais difícil isso passar.

 

E é necessário um maior empenho por parte dos movimentos da Igreja, na defesa desses trabalhadores que ainda agora falávamos, sobretudo daqueles mais desprotegidos que estão ligados, por vezes, a redes de imigração?

Ah, isso sim. Os movimentos que se dedicam a estas causas permanecem ativos. Eu falo por aqueles que conheço, e nos cristãos em geral e na Igreja em geral, existe um certo problema difícil de analisar, que é alguma indiferença e um certo medo de se meter por estes caminhos. Nós não encontramos muitos movimentos na Igreja que tomem a sério a vida dos trabalhadores, os seus problemas, as suas angústias e também as suas lutas libertadoras. E nas expressões públicas que ouvimos, é raro também termos alusões a esta área. Existem algumas alusões à Pastoral do Trabalho, e em alguns países, por exemplo, em Espanha, especialmente a Conferencia Episcopal tem um sector que se chama a Pastoral do Trabalho. Em Portugal não temos.

 

Temos a Pastoral Social, que engloba tudo.

Depois engloba tudo e quando é tudo, acaba por não ser nada, não é?

 

Mas pergunto-lhe especificamente, se sente essa preocupação? Há uma ideia de que os trabalhadores são pouco ouvidos na Igreja.

Eu vou-lhe responder isso com uma conversa que tive agora há pouco tempo com um Bispo. Nós estávamos numa formação de padres, que temos todos os anos, das dioceses do sul. Houve a intervenção de um padre de Braga que se ocupa da pastoral universitária. Ele, na sua intervenção, referiu que em Portugal, apenas 42% dos jovens, agora falando de jovens, têm acesso à universidade. E eu, no intervalo, perguntei a um dos bispos: E os outros 58%, quem cuida deles? Ele disse, pois, e o mais grave é que não foram eles que se afastaram, fomos nós que os abandonámos. Quer dizer, portanto, que há aqui um certo mal-entendido entre a Igreja e o mundo do trabalho. Há assim uma dificuldade em isso ser tomado a sério e a ser assumido.

 

E essa dificuldade poderia ser superada, por exemplo, com uma dinamização maior da chamada pastoral do trabalho?

Pois, acho que é isso que faz falta, no plano das ideias, de propor e clarificar essas ideias. inclusivamente a ligação ao Evangelho, à mensagem libertadora de Jesus Cristo, e depois ter meios. Há quem diga, por exemplo, que estes movimentos de ação católica estão desatualizados. Tudo bem, eu acho que estes movimentos não têm promessa de vida eterna, só que ainda não encontrei nada que os possa substituir, que possa fazer esse trabalho que era necessário ser feito.

 

Quem está a ouvir esta conversa está a ouvi-la a um domingo, que é um tema que tem sido presente na pastoral operária, sobretudo na Europa, que é a questão do domingo livre. É uma batalha que está definitivamente perdida?

Eu não sei. Eu sei que a LOC trabalha muito nessa área e tem várias reflexões, inclusive documentos sobre isso, mas eu pessoalmente não faço compras ao domingo. Mas um dia destes, eu vivo em Almada, e fui ao Fórum de Almada um domingo de manhã. Estava cheio. Estava cheio. E eu pensei, este problema não se resolve nem com leis, nem com nada disso. Somos nós que temos de o resolver. Se não fizermos compras, aquilo fecha, mas enquanto houver gente para comprar aquilo vai estar aberto. É uma luta que eu acho que deve continuar, mas não sei como se pode resolver.

Porque há muitas questões que estão ligadas e que são transversais, não é? Também a possibilidade de trabalhar mais perto de casa, ter mais tempo livre durante a semana para que o domingo seja verdadeiramente um dia livre.  São questões da pastoral do trabalho que se cruzam nessa matéria?

Pois, pois.  A Igreja propõe que o domingo seja o Dia da Família, o dia também de culto, religioso, e para isso é necessário tempo, disponibilidade. A vida de famílias também, para se poder conviver, etc. É verdade também que alguns vão ao centro comercial para passear. Vão em família e aproveitam para passear. É um tema um bocado complexo.

 

Padre Horácio, 133 anos depois da sua publicação, a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, que tratou das condições do trabalho, permanece como um documento muito atual na defesa da dignidade do trabalhador?

Pois, a Rerum Novarum começava por se referir à miséria imerecida dos proletários, dos trabalhadores, que era fruto da concentração da riqueza nas mãos de um pequeno número.  Enquanto a grande maioria permanecia na miséria. Acho que assim, tomando isto assim no geral, o problema mantém-se. O problema mantém-se. Cada vez há menos ricos, mas mais ricos, cada vez há mais pobres e mais pobres, com maior índice de pobreza.

 

E o conhecimento deste pensamento social-cristão, da doutrina social da Igreja, como é tradicionalmente conhecida, poderia ajudar a superar aquilo que falava pouco, de uma certa incompreensão entre a Igreja e o mundo do trabalho?

Sim, se ela fosse bem estudada, bem compreendida e posta em prática, esse problema nunca estaria totalmente resolvido, mas seria o caminho. Quanto a mim seria o caminho. Só que uma coisa é a comunicação, que é a vossa área, uma coisa é o emissor, outra coisa é o recetor. Portanto, aqui há uma emissão forte de doutrina, de documentos, etc.; agora, a sua receção, quanto a mim, permanece fraca.

Padre Horácio, vamos terminar a nossa entrevista e deixamos para o final a sua mensagem para este Dia do Trabalhador, o 1º de Maio?

O que eu posso dizer é que eu desejo que seja um dia de festa, um dia em que pudéssemos estar o mais possível unidos, nos mesmos objetivos, nos mesmos trabalhos e que no aspeto da Igreja, pudesse ser -não sei se poderá ser, se isso pode ser assim- mas que pudesse ser um estímulo para encararmos de uma maneira mais objetiva, mais verdadeira também, esta área da vida das pessoas, da vida dos trabalhadores, de maneira a haver uma maior compreensão, uma maior receção dos numerosos documentos que existem sobre o assunto e também um esforço para os pôr em prática.

 

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