Ser fator de soma

Padre Manuel Ribeiro, Diocese de Bragança-Miranda

Escolho as palavras de Cícero para iniciar esta humilde reflexão: “Certifica-te que és um fator de soma na vida das pessoas de quem participas” (Cícero). A mundividência de Cícero muito nos ajuda a perceber e analisar os tempos actuais. Para ele, o Homem existe e distingue-se sempre e desde que esteja ao serviço do seu próximo, sempre que é capaz de aportar valor e significado à vida do outro, sempre que é capaz de ser “fator de soma” na vida das pessoas de quem ele se cruza. Se olharmos com a devida atenção, reconhecemos que os tempos actuais estão muito marcados pela afirmação dos extremos, pela polarização das tendências e por uma comunicação cada vez mais binária (ou-ou), ao invés de uma comunicação que deve ser mais inclusiva e humanista (e-e).

Somos hoje convidados – de forma enganosa, diga-se – a construir a nossa identidade por meio da fomentação da autonomia, da positividade ou do ‘seja você mesmo’. Até aqui tudo bem. Porém, esta construção, ao invés de se alicerçar nos valores humanistas e altruístas, edifica a identidade através do consumo ou da capacidade que cada um é capaz de aportar à sua vida. Veja este exemplo: quantas vezes não vemos identidades construídas e sustentadas a partir das ‘marcas’ usadas – como roupa, acessórios ou automóveis – ou de um estilo de vida marcado pelo consumo ou hiperconsumo? Gilles Lipovetsky é muito sagaz ao apontar que os tempos modernos são marcadamente consumistas e geradores de hiperindividualismos.

O Papa Francisco, na sua mais recente Carta Encíclica “Dilexit Nos”, é perentório ao afirma que o tempo hodierno é deve resgatar a beleza ontológica do “coração” e, deste modo, desafiar-se a lutar “contra a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência” (Dilexit Nos, 2).

Num mundo assim, jamais haverá espaço ou lugar para o outro, para a relação, para a conecção com a vida e com o mundo, para abertura à novidade e ao encanto dos encontros, para o crescimento e para o desenvolvimento na partilha e na multiplicação dos dons e ministérios, para a construção de uma vida pautada pelo altruísmo e pela solidariedade, para a edificação da existência sob o pêndulo do amor genuíno, doador e gerador de vida, de sentido e de significado, para que Deus ocupe o seu lugar no lugar que é somente d’Ele e que o coração e a alma possam sentir-se eternamente abraçados pela ternura e pelo amor divino.

Esta forma de ser e de estar, centrada, essencial e preferencialmente, no ego, impede que haja a vontade de comungar projectos colectivos, a vontade de tirar do seu tempo e da sua vida e, generosamente, oferecer-se em ordem a um bem maior e ao bem-comum. Belamente, o Santo Padre, o Papa Francisco, nos relembra esta triste realidade de que “hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre” (Dilexit Nos, 218).

Este propósito transportar-nos ao compromisso de assumirmos a nossa própria fraqueza, carência e a dependência como parte de nós e que, repito, não existem para nos condicionar ou maniatar. Antes, existem para nos apercebermos que somos capazes de ultrapassar e ampliar a nossa vida em ordem a uma existência mais livre, desprendida e comprometida com as verdadeiras e reais necessidade da vida e da existência, sempre na lógica da edificação do bem-comum e na construção de uma sociedade humanista e humanizadora de rosto humano. Por isso, fica esta questão de fundo: sou eu fator de soma junto daqueles que me rodeiam?

 

 

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