Natal: Reclusos «regam as batatas e o bacalhau com as lágrimas» – Padre João Torres

Assistente espiritual dos Estabelecimentos Prisionais de Braga e Guimarães fala do silêncio, das lágrimas e da prenda que foi conhecendo, em 18 consoadas nas prisões

Foto: Agência ECCLESIA/LFS

Braga, 28 dez 2021 (Ecclesia) – O padre João Torres, assistente espiritual dos Estabelecimentos Prisionais de Braga e Guimarães, disse que os reclusos que passam o Natal nas prisões “regam as batatas e o bacalhau com as lágrimas”.

“Não existe o barulho do costume: em vez de termos homens grandes, de cabelo e barba grande, olho para eles e parecem-me crianças pequenas, com o rosto envergonhado. Apresentam um tabuleiro, é-lhes colocado no prato algumas batatas, bacalhau e noto que alguns se sentam na mesa e não olham para ninguém. Alguns regam as batatas e o bacalhau com as lágrimas deles. Imagino que muitos voltam à sua casa, ao rosto da sua mãe, irmãos, e aqueles homens que para tanta gente parecem monstros, voltam a ser crianças”, conta à Agência ECCLESIA.

O sacerdote conta que em 18 anos procurou passar sempre uma parte da noite de Natal com os reclusos, “a minha família do coração”, seguindo depois para jantar com a sua família e celebrando a missa dessa noite na comunidade a que preside.

“A minha família sabe que se eu chego mais tarde é porque estive com os reclusos. E se por acaso não posso estar com eles, a minha família sabe que o meu Natal não é a mesma coisa. A missa da meia-noite é celebrada na minha comunidade e eles sabem que eu estive na prisão”, acrescenta.

Sobre a noite nos Estabelecimentos prisionais relata “uma experiência difícil”.

“Tudo aquilo me inquieta, é tudo muito silencioso. Alguns comem em menos de um minuto”, recorda.

A relação de “pai” para com os reclusos é sublinhada pelo sacerdote que afirma a sua disponibilidade para os escutar e “chorar com eles”.

“Chamam-me padre e eu sinto-me pai dos que estão entre grades: estou aqui para ti. Se quiseres falar, fala, se quiseres chorar, chora. Um recluso não tem um local para chorar. Tem uma cela partilhada por outros, não temos espaço de culto, onde a pessoa possa chorar. Nem todos os padres podem entrar dentro das prisões para o recluso poder chorar no ombro de alguém. Ele não vai chorar no ombro do diretor da cadeira, do diretor de reinserção, do psicólogo. O padre é essa figura onde pode chorar e sorrir, também com ele, pode acreditar”, destaca.

Naquela noite de Natal, “depois de em silêncio se jantar”, os reclusos levantam-se e saem.

“Geralmente levamos uma prenda, uma carta escrita por um jovem e oferecemos isso aos reclusos, às vezes algo mais. Dou-lhes um abraço. Nunca digo «Feliz Natal». Muitas vezes chora o recluso e choro eu. Vão-se embora, e quando viram costas, acenam com a mão e dão-me um sorriso. Essa é a minha prenda”, conta.

O programa Ecclesia na Antena 1 conta, esta semana, diferentes formas de viver e contar o Natal.

LFS/LS

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