Homilia na Missa Crismal do arcebispo de Braga

Homilia  da Missa Crismal 2023

Arcebispo de Braga, D. José Cordeiro

A manhã de quinta-feira santa junta-nos na Sé para atualizar a sacramentalidade da Igreja sinodal samaritana com a bênção e a consagração do azeite da unção e com a renovação das promessas do presbitério unido na mesma fraternidade sacramental. A Quaresma começa com o rito austero das cinzas na testa e conclui-se com a frescura do primeiro amor da unção e com o próprio azeite que santifica. Jesus Cristo é o bálsamo da alegria do nosso ministério.

O azeite é o fruto da oliveira e atenua os sofrimentos e quando aplicado com misericórdia é símbolo da pastoral sinodal. É o que acontece na memorável parábola do bom samaritano que cuida e acompanha o homem que caiu nas mãos dos assaltantes (cf. Lc 10, 34). Além de condimentaras comidas, o azeite cura com a sua fragrância os ferimentos.

Martin Luther King, num discurso a 3 de Abril de 1968, um dia antes de ser assassinado, citou esta mesma parábola e abraçou uma pergunta. O sacerdote e o Levita questionaram-se: «se eu parar para ajudar esse homem, o que me acontecerá?» Mas o bom Samaritano trocou a pergunta: «se eu não parar para ajudar esse homem, o que lhe acontecerá?».

Queremos ser samaritanos de sinodalidade, ou seja, queremos caminhar juntos no cuidar bem de todos, especialmente dos que mais sofrem e dos que foram e são vítimas de abusos e violências, de pobreza e de indiferença?

Uma cultura sinodal samaritana não consente ofuncionalismo, o carreirismo e o clericalismo, mas esforça-se todos os dias nas atitudes do serviço, dahumildade e da caridade. A função não ofusque o perfumeda unção.

  1. Sinodalidade na caridade pastoral

O decreto conciliar Presbyterorum Ordinisprivilegiou o uso do conceito caridade pastoral, para assinalar o vínculo da caridade pastoral no exercício do ministério presbiteral como amoris officium. Segundo esta expressão de Santo Agostinho, existe uma íntima conexão entre a vida espiritual do presbítero e o exercício do seu ministério.

A caridade pastoral ou o ofício do amor do presbítero deve ser o de apascentar o rebanho do Senhor, no dom total de si à Igreja, e não se apascentar a si mesmo. A própria identidade presbiteral deriva da participação específica no sacerdócio de Cristo e esta insere o presbítero no mistério trinitário e no mistério da Igreja.

Os presbíteros têm como uma obrigação, por motivo peculiar da sua ordenação, tender à santidade. Na verdade, na epiclese da oração de ordenação dos presbíteros pede-se a Deus Pai que renove no coração dos presbíteros o Espírito de santidade, para que a vida presbiteral seja edificativa para todos.

Todavia, no ministério e na vida dos presbíteros existe o grande perigo de reduzir a sacramentalidade a mero funcionalismo ou ativismo, que são a nova feição do clericalismo, porque esquece a sacramentalidade da sinodalidade. Como lembrava Santa Teresa de Jesus: «o essencial não é pensar muito, mas amar muito».

O dom de Deus recebido na ordenação é para ser quotidianamente renovado, conforme a exortação paulina: «Não te esqueças do dom que está em ti, que te foi dado mediante uma profecia acompanhada da imposição das mãos dos presbíteros» (1Tm 4,14; cf. 2Tm 1,6).

  1. A sacramentalidade da sinodalidade

Há 20 anos, na exortação Ecclesia in Europa, São João Paulo II escreveu acerca daquela urgência que se reavive na Igreja o autêntico sentido do mistério: «sê uma Igreja que reza, louva a Deus, reconhece-Lhe o primado absoluto e exalta-O com jubilosa fé. Redescobre o sentido do mistério: vive-o com humilde gratidão; testemunha-o com alegria convicta e contagiante. Celebra a salvação de Cristo: acolhe-a como um dom que faz de ti seu sacramento; faz da tua vida o verdadeiro culto espiritual agradável a Deus». Acolher o Mistério, abre a um ministério. Só o Mistério revela o Mistério. O desafio do caminho sinodal é do Mistério ao ministério.

A síntese relativa à primeira fase do Sínodo sobre a Sinodalidade, que foi objeto de um debate aberto na feliz assembleia sinodal, feita no espaço Vita, no memorável dia 14 de junho, juntamente com o documento elaborado pelo Grupo Sinodal arquidiocesano referente à etapa continental serão uma boa ferramenta para uma renovadaetapa do caminho sinodal da nossa Arquidiocese.

Por isso, convocamos todos os grupos sinodais já existentes e mais grupos a criar, para a II Assembleia sinodal de um dia inteiro a realizar no dia 16 de setembro de 2023, para juntos discernirmos as opções e os caminhos a seguir. Cada grupo poderá indicar até dez prioridades que entendam para a ação pastoral futura da Arquidiocese.

Juntos e todos, poderemos sonhar um projeto pastoral arquidiocesano até 2033, ano em que celebraremos os 2000 anos da Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, o coração do Ano Litúrgico?

  1. A pastoral da Caridade

A unidade entre a vida e a atividade encontra na pastoral da caridade, sendo ainda mais claro, se consideramos a passagem evangélica do lava-pés (Jo 13, 1-15) no contexto da preparação da última ceia e mistério pascal; bem como o mandatum novum. Para Jesus, a única autoridade é o serviço. Com a água nos pés, abre-se a celebração do Tríduo pascal. A pessoa toda é convocada na conversão pastoral e missionária.

É assim desejável, em razão do seu amor pastoral, que o Presbítero, representação de Cristo e da Igreja, torne presente na história, o que escutamos no Evangelho e na primeira leitura pela palavra do profeta Isaías: «o Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres».

A Eucaristia é aquela celebração que o Presbítero «com sublime e divina monotonia, deverá realizar todos os dias da sua vida, até que um dia da sua inteira vida será consumado naquele sacrifício, que ele celebrou cada dia» (K. Rahner).

A vida espiritual do presbítero deve, pois, alimentar-se da celebração da Liturgia das Horas e, quanto possível, convidar os fiéis para «a celebração comunitária das partes mais importantes da Liturgia das Horas, mormente nos domingos e festas» (IGLH 23).

O seguimento de Cristo pode ser vivido de formas variadas, mas é nas ações litúrgicas que Cristo está de modo especial presente. Por isso, «a liturgia é estar à volta da pessoa do Senhor, escutá-lo, falar-lhe, rezar-lhe, deixá-lo rezar por nós. Tudo isto que os Evangelhos referem de Jesus entre a gente é uma antecipação da liturgia e por sua vez a liturgia é uma continuação dos evangelhos» (C. Martini).

A formação permanente concretiza a centralidade de Cristo, este estar com Jesus Cristo, e ir atrás dele, mantendo os olhos fixos nele, como escutámos no Evangelho. A resposta inicial ao chamamento de Jesus, aquela do dia da ordenação, deve reafirmar-se ao longo dos anos do presbiterado e em numerosíssimas respostas, todas radicadas e vivificadas no “sim” da ordenação: neste sentido até se pode falar de uma vocação “no” presbitério.

Em ordem a uma comunhão efetiva e afetiva e a uma amizade fratarna existem alguns momentos privilegiados: de carácter litúrgico (a concelebração da Missa crismal de Quinta-Feira Santa; a concelebração nas ordenações; outros momentos de oração que a Arquidiocese recomenda ao ritmo do Ano litúrgico); de carácter pastoral (a visita pastoral, os encontros de espiritualidade  sacerdotal, os atuais dinamismos da Jornada Mundial da Juventude); de carácter cultural (encontros de estudo e de reflexão comum, desporto e convívio);  de carácter existencial (os arciprestados, as formas de vida em comum, o IDAC, as associações sacerdotais, a fraternidade sacerdotal); de carácter espiritual (o retiro anual, a recoleção mensal, a lectio divina, a prática da direção espiritual, a devoção mariana).

A liturgia existencial renova no presbítero a frescura perene de Cristo na novidade da história do homem, no “sacerdócio de serviço” que se realiza na comunidade cristã através da presença ativa e operante de Cristo no seu mistério pascal e dador do Espírito.

O ministério da Palavra, a celebração dos sacramentos, a caridade pastoral e o ministério da oração empenham toda a personalidade do presbítero no cuidado do rebanho a si confiado.

  1. Senhor, cantarei eternamente a vossa bondade

Para terminar, o teólogo Johann Baptist Metz, pai da teologia política que emerge do Concílio Vaticano II, referia que a Igreja antes de ser crítica da sociedade, precisa de fazer uma “auto-crítica” a si própria, pois é na medida em que ela faz uma crítica interna que lhe advém toda a autoridade profética para ser uma voz crítica da própria sociedade.

Por todas as vezes que o nosso ministério não foi lugar de acolhimento e hospitalidade, de fidelidade e generosidade, de encontro fraterno autêntico, pedimos humildemente perdão a Deus, à Igreja e a todas as pessoas vítimas das sombras que não deveriam acontecer no mistério da luz e da liberdade na verdade.

Sabemos que não é suficiente pedir perdão. Por isso, estamos empenhados em escutar, acompanhar, proteger e reparar as pessoas vítimas que o desejem, como já o dissemos na nossa carta ao Povo de Deus, reforçando a nossa firme responsabilidade com a publicação do“relatório da Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais contra as crianças na Igreja Católica Portuguesa”.

Hoje, ao vivermos um injusto clima de suspeição presbiteral, não podemos, contudo, de deixar de agradecer a Deus o tácito e enorme trabalho pastoral que tantos presbíteros desempenham na sua missão.

Por isso, hoje é o dia de agradecer também o vosso amor e dedicação à Igreja Arquidiocesana. Quero, por isso, louvar a Deus por todos e cada um de vós, nomeadamente:

  1. Os presbíteros que, no seu silêncio e anonimato, vivem com rigor a beleza do seu ministério sacerdotal e fidelidade ao Evangelho;
  2. Os presbíteros que, com os seus dons e “defeitos de estimação”, apenas desejam construir progressivamente uma Igreja de todos e para todos;
  3. Os presbíteros que, em nome da comunhão, têm a coragem de ir ao encontro dos seus irmãos presbíteros em sofrimento, no ambiente onde estão, na casa paroquial, na casa sacerdotal ou outro lugar, não permitindo o seu isolamento e abandono presbiteral;
  4. Os presbíteros que, em nome da sinodalidade, procuram operar as orientações pastorais da Igreja universal e arquidiocesana;
  5. Os presbíteros que, no seu justo sentido de subsidiariedade, cumprem para com as obrigações económicas da Arquidiocese, de modo a que o pouco seja o suficiente para sustentar a alegria da missão do Evangelho;
  6. Os presbíteros que, no seu belo zelo pastoral, procuram apascentar e integrar todos os membros da comunidade, não deixando nenhuma ovelha para trás;
  7. Os presbíteros que, além dos mecanismos paroquiais da ação social (diaconia da caridade), bastantes vezes abdicam das suas próprias remunerações para, à semelhança do bom samaritano, ajudar economicamente as famílias mais vulneráveis das suas comunidades;
  8. Os presbíteros que, numa dedicação radical ao Evangelho, muitas vezes só lhes resta tempo para jantar às 11h da noite numa bomba de gasolina;
  9. Os presbíteros que acompanham os dinamismos da Jornada Mundial da Juventude e testemunham vivamente que a «pastoral juvenil só pode ser sinodal» (Papa Francisco);
  10. Os presbíteros que não se contentam em doar-se com o mínimo indispensável, mas se esforçam com o máximo possível.
  11. E, os presbíteros que, apesar das inúmeras difamações injustas a que estão sujeitos, jamais deixam de amar loucamente o Senhor Jesus, que é a único mistério pleno do nosso ministério.

Caríssimo Presbítero, lembra-te que Deus escolheu-te por aquilo que tu és: Deus não te quer perfeito, mas quer-te íntegro e a tempo inteiro. E como nos recorda um dos cânticos litúrgicos mais conhecidos do nosso Minho, da autoria do Pe. Henrique Faria, resta-nos rezar a Deus ao final de cada jornada: «Tomai e recebei as horas do meu dia. Alegrias e dores, penas e trabalhos. Fora eu rico, Senhor, e muito Vos daria. Mas sei que nada valho».

+ José Manuel Cordeiro

Partilhar:
Scroll to Top