Homilia do Bispo do Porto na Missa de Páscoa

Salvação e fé

 

Recordamos a profecia de Jesus: “Destruí este templo e eu, em três dias, o reedificarei” (Jo 2, 19). E o Evangelista explica: “Ele referia-se ao templo do seu corpo” (Jo 2, 21). Destruído na sexta feira e permanecendo no túmulo em dia de sábado, na aurora de Domingo cumpre-se a profecia e o Senhor, vivo e próximo, volta ao contacto com os seus. É esta ressurreição gloriosa que celebramos neste dia de Páscoa, no qual ressoa o grito incontido: “Jesus está vivo! Aleluia”.

Como se chegou a esta certeza? O Evangelho dá-nos pistas: a perceção de Maria Madalena, a pedra de acesso ao túmulo retirada, as ligaduras no chão, o sudário enrolado. São estes “sinais” que levam à compreensão e aceitação do mistério. Sinais para alguns insuficientes, pois não demonstram laboratorial ou matematicamente, mas plenamente reveladores para quem os vive a partir da experiência da proximidade, da fé e do amor.

Foi o caso de João, o tal discípulo que chegou ao túmulo em primeiro lugar e que “viu e acreditou”. Que fez correr João, porventura apelidado de louco pelos comerciantes da estreita rua que, da cidade velha de Jerusalém, saía em direção ao monte Calvário? O mais jovem dos Apóstolos foi o único que tinha vivido de perto os dramas do julgamento, crucifixão e sepultura do Senhor. Fez-se «próximo» de Jesus, quando os outros se afastaram. Por amor, e só por amor, não abandonou o Amigo nem a Mãe do Amigo. Por isso, receber d’Ele o sagrado encargo de amparar a Mãe, já viúva e, a partir daquele momento, sem ninguém para cuidar dela.

É por esta contínua presença junto do Amigo que, para o “discípulo amado”, a fé na ressurreição se tornou um dado quase natural. “Viu e acreditou”. Viu a partir do olhar da afetividade e acreditou confiadamente ou com a naturalidade com que uma criança acredita na mãe. É provável que a sua razão não compreendesse tudo, mas o amor ajudou o coração a abrir-se e a ver. Foi essa intuição amorosa e de proximidade que permitiu a João ver e acreditar antes de todos os outros. Nele, a alegria pascal maturou sobre uma base de amor fiel. Um amor que nada nem ninguém pode quebrar ou pôr em causa.

Creio que esta continua a ser a grande via de acesso ao mistério central da nossa fé: o da ressurreição de Cristo. Racionalmente, nenhuma ciência a demonstra. Mas na proximidade existencial e amorosa com o Senhor, «comendo e bebendo com Ele», como invocava S. Pedro no discurso escutado na primeira leitura, a fé de que “Deus O ressuscitou dos mortos” e “O constituiu juiz dos vivos e dos mortos” torna-se uma “absoluta certeza”. Certeza pregável a “toda a casa de Israel”, mais familiarizada com a crença na ressurreição, mas também pregável ao ainda pagão Cornélio e sua família, o qual, curiosamente, o chamou à cosmopolita Cesareia Marítima, porque se impressionou com esse testemunho e se dispôs a ser batizado.

Como sabemos bem, a atualidade necessita muito deste testemunho a ser dado por aqueles que vivem a tal proximidade amorosa com o Senhor. Face a uma nova cultura de massas, por vezes de base materialista e hedonista, é preciso apresentar o grande “sinal” histórico: ao longo de dois milénios, milhões e milhões de cristãos afinaram a sua existência pela “ressurreição” e celebraram-na ininterruptamente no próprio dia semanal em que aconteceu: no primeiro dia da semana ou Domingo. De tal forma que fé em Jesus Cristo, crença na ressurreição, guarda do Domingo como dia absolutamente diferente e celebração festiva aglutinaram-se numa mesma unidade, qual marca identitária da cultura ocidental humanista.

Esta marca está a perder-se. E a perder-se em detrimento da dignidade pessoal e dos direitos humanos. Pensemos no novo esclavagismo da laboração contínua, «legalmente» imposta pelos novos senhores do mundo que dominam a economia e, por esta, os governos. Pensemos como os critérios dos «turnos», em sectores onde, para além da ganância, nada os justifica, a par dos graves transtornos psicológicos do trabalhador e do fracionamento dos encontros familiares, está a gerar a «morte do Domingo», o fim dos ritmos semanais, a abolição dos verdadeiros momentos celebrativos e o fracionamento da família e das relações de amizade. O mesmo se diga da abertura dos supermercados e dos centros comerciais ao Domingo, expressão de um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico. Enfim, está-se a gerar uma civilização fria, sem alma, individualista, sem profundidade de relações e até mesmo sem outros contactos que não sejam os da «realidade virtual».

Caro cristãos, convoco-vos para esta tarefa urgente de trazer nova alma à nossa cultura mediante a inserção nela da crença profunda na ressurreição. Dizei-o a todos e vivei-a convictamente a partir da proximidade amorosa com o Senhor Jesus. A Páscoa é a alegria do céu que irrompe sobre a terra. A Páscoa é a luz da esperança que desfaz as nossas trevas e angústias. A Páscoa é a forma de percebermos uma nova comunhão entre as pessoas. Jesus está vivo! Brilhe em todos nós a alegria da ressurreição.

D. Manuel Linda

 

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