Homilia do bispo da Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança na Celebração da Paixão

HOMILIA SEXTA-FEIRA SANTA de D. RUI VALÉRIO

Diocese das Forças Armadas e Forças de Segurança

1.Envolvidos pelo silêncio que brota da Cruz do Calvário, de onde pende o Redentor do mundo, o nosso assombro iguala o de Elias, quando, no Monte Horeb, pressentiu a passagem do Senhor no murmúrio de uma brisa suave e cobriu o seu rosto. Hoje, cobrimos aqui a nossa mudez com algumas questões decisivas que a santidade deste Horizonte nos sugere. E não nos questionamos sobre o porquê do sofrimento, mas interpelamos o Cristo Crucificado sobre que Deus nos revela ele e que ser humano nos propõe.

 

2.“Que Deus nos revelas?”

Ao contemplarmos o Gólgota, vislumbramos um Deus de compaixão, que assume totalmente a nossa condição, partilhando connosco tudo quanto nos define e configura, exceto o pecado, mesmo os limites e constrangimentos com que a existência humana se confronta, como a experiência do sofrimento, da insuficiência, da vulnerabilidade e da morte.

O livro do Génesis diz-nos que, ao sermos criados, Deus imprimiu em nós a Sua imagem e semelhança, concedendo-nos os seus atributos: a Beleza, a Bondade e a Verdade. Os relatos da crucificação parecem, de certa maneira, inverter o que fora realizado no ato criador primordial. Já não é o ser humano a receber de Deus a sua assinatura inconfundível; é o próprio Deus a receber da condição humana tudo o que a define até ao limite impensável do sofrimento, da dor, da morte e da solidão, que a ele era estranho e contrário. E é maravilhoso constatar que Deus, por amor, se deixa tocar por aquilo que não havia criado e a ele era adverso —o sofrimento e a morte —, permitindo que a sua amada criatura o insulte, o rejeite, o fustigue e o condene à mais ignominiosa de todas as mortes. É assim que Deus nos recebe e acolhe inteiramente, com toda a nossa miséria, com toda a nossa podridão. Grande e inimaginável é semelhante Amor! Com razão dizia S. Bernardo de Claraval: “As chagas do corpo deixam ver o íntimo do coração”.

 

3.A humanidade vive no exílio de si mesma. Veio de Deus e para Deus foi criada, mas na desobediência a Deus, partiu para uma terra distante e longínqua, afastada da sua pátria divina. Jesus veio até aos seus domínios para a resgatar dessa condição desgraçada, para a reconquistar e libertar, para a fazer regressar à terra sagrada da sua condição originária. A Cruz é, portanto, o êxodo que realiza esse regresso, é o caminho pelo deserto da vida, sem o qual não seria possível ver a própria libertação, a pátria onde corre leite e mel, onde ninguém será escravo ou servo, onde todo o ser humano se assume como filho amado de Deus e irmão dos demais. A cruz é também a ponte, através da qual Cristo vem até nós, ao mesmo tempo que mergulha na miserável situação do ser humano para nos resgatar e reconquistar para Si. Na cruz, revela-se este apego de Deus à humanidade, a cada um de nós, este amor indizível que se estende até à loucura de jamais desistir de nós, filhos pródigos, alienados e vendidos aos deuses fáceis e mesquinhos.

 

4.“Que ser humano nos propões?”

Cristo Crucificado é o Filho de Deus que se entrega à condição humana inteiramente por amor. Não foi por causa de nenhuma lei eterna e imutável à qual Deus teria de obedecer que o Filho se fez humano e assumiu todos os condicionalismos dessa humanidade até à morte. Foi por absoluto amor que Deus assumiu a carne vulnerável e desabrigada. Mostra-nos, assim, que o único itinerário possível para a vida é o caminho do amor, da dádiva de si até ao limite, da entrega à causa de Deus e dos seres humanos. Apenas deste modo poderemos viver ao jeito e ao estilo de Deus, que se não poupou, mas se ofereceu, na fragilidade ignominiosa da cruz, para a redenção da humanidade ferida. Ser dom de si, exatamente ao estilo e jeito de Deus, eis a missão de cada crente.

 

5.Elie Wiesel, um autor judeu que viveu o terrível holocausto nazi, refere que enquanto Cristo já desceu da Cruz, foi sepultado e é celebrado como Ressuscitado, Abraão ainda “continua com o braço levantado, mão estendida, segurando o punhal para degolar o filho Isaac” nos Moriá do mundo. Embora aluda ao sofrimento do povo judeu, Wiesel tem razão também no que se refere a Cristo: o mesmo Cristo que foi crucificado e que morreu —Ressuscitou.

Contudo, o santo povo de Deus, a Igreja, não obstante os milénios que passaram, continua, com Maria e João, o discípulo amado, sempre junto à Cruz. Nunca a Igreja arredou pé de junto de quem sofre, de quem pende da Cruz porque os cristãos nunca deixaram de se compadecer com quem sofrer, nem de estar junto dos aflitos. Este o ser humano proposto pelo Crucificado: fazer-se próximo de todos os que estão caídos pela estrada da vida: os que sofrem num leito do hospital, os que vivem atormentados pelo isolamento e solidão, mas também os que diariamente são fustigados pela dor de não serem devidamente valorizados pelo seu trabalho.

Infelizmente, assistimos hoje a um incremento das condições que tornam a vida de muitos um autêntico calvário. Quanta solidão e abandono dos mais velhos! Quanta exploração iníqua do trabalho alheio, não compensado como seria de esperar, nem valorizado por aqueles que enriquecem sobre o sofrimento e o desânimo dos outros com quem não querem nem pretendem partilhar os recursos obtidos! A economia não parece estar direcionada para a realização das pessoas, de todas as pessoas, mas para o enriquecimento de um pequeno número. Vive-se para acumular incessantemente, para engordar as contas bancárias estrategicamente abertas em paraísos fiscais. E é assim que vemos os estados serem espoliados dos devidos impostos que alguns dos mais ricos se negam a pagar por via de ardis financeiros, comprometendo o bem comum. Os crucificados da história são os mesmo de sempre: os mais pobres, os deserdados, aqueles a quem não se paga a justa remuneração, os que fogem da guerra e não têm onde pousar a cabeça, os que procuram melhores condições de vida, mas encontram apenas ódio e violência… Do outro lado, num profundo desdém pelo bem dos outros, os algozes de Cristo perpetuam-se de azorrague em punho, apegados aos bens de que não precisam, indiferentes às chagas dos novos crucificados e hostis a todos os que possam perturbar a sua vida privilegiada e mesquinha.

Acolhamos o incomensurável dom que o Crucificado, do alto da Cruz, nos oferece: um projeto de nova humanidade construída sobre os alicerces do seu amor infinito.

+Rui Valério

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