Homilia de D. Manuel Felício, bispo da Guarda, na celebração de Sexta-Feira Santa, Paixão e Morte do Senhor

1.Celebramos a Paixão e Morte de Jesus.

Diante do Senhor, morto e ressuscitado, contemplamos o mistério da morte e a realidade do sofrimento que são de todos e não têm justificação fácil.

Olhamos para o mal que faz sofrer, sobretudo tantos inocentes; para os erros cometidos  por todos, mas principalmente pelos que têm especiais responsabilidades na condução da vida pública, em diferentes níveis.

Olhamos para as culpas derivadas dos erros cometidos, umas vezes assumidas por quem os praticou e outras não.

Olhamos para os inocentes que sofrem e pagam por erros que não cometeram, vítimas de calúnias e perseguições, quantas vezes a coberto das leis e sujeitos aos interesses de quem tem o poder.

E perguntamo-nos naturalmente sobre quem deve pagar pelos prejuízos causados em consequência dos erros praticados.

 

A situação de guerra que, há mais de um ano, atinge neste momento não só os dois países mais diretamente envolvidos, mas também toda a Europa e o mundo obriga-nos a parar e a considerar a gravidade dos erros e pecados a partir das suas consequências na vida das pessoas e dos povos. E perguntamo-nos: quem e como deve pagar as consequências desastrosas desses erros, mesmo sem se poderem identificar por inteiro as culpas e os culpados?

Estamos a constatar  realidades que fazem parte da existência diária  dos cidadãos e com consequências desastrosas para a vida das pessoas, das comunidades e da própria natureza.

 

Nesta hora de crise por que passa o mundo e a Igreja que faz parte deste mundo, reconhecemos os muitos erros praticados que estão a provocá-la e estamos dispostos a reparar as suas consequências, quanto de nós depende, onde quer que elas se verifiquem.

Não podemos resignar-nos e baixar os braços, impedindo que tanto bem que tem passado por pessoas e instituições, agora questionadas em algum ou alguns dos seus procedimentos errados, inutilizem esse mesmo bem e fiquem impedidas de o continuar a oferecer à sociedade de hoje e do futuro.

 

2.A Paixão e Morte de Cristo projeta luz sobre todas estas realidades e ajuda-nos a encontrar caminhos.

 

Assim, ao escutarmos a passagem de Isaías sobre a figura simbólica do Servo de Javeh, que antecipa a história do próprio Cristo, nós sentimos a proximidade e a solidariedade de alguém que vive os mesmos dramas que se repetem na história e nos dá indicações sobre como hoje os havemos de viver em forma positiva para nós e para os outros.

Assim, esse alguém, sem ter cometido erros e sem culpas,  suporta as nossas enfermidades e toma sobre si as nossas dores. Mais ainda, carrega sobre os seus ombros o castigo devido às nossas faltas, erros e pecados.

Foi injustamente condenado à morte, por uma sentença iníqua, mas não se revoltou, antes, humilhou-se voluntariamente  e ofereceu a sua vida como sacrifício de expiação. Carrega sobre si as culpas da multidão e intercede junto de Deus pelos pecadores.

 

Nesta descrição do Profeta, nós estamos a ver representada a pessoa de Jesus, esse Sumo sacerdote de que nos fala a Carta aos Hebreus. Ele, como Sumo Sacerdote, penetrou no céu, sem deixar de se solidarizar com a nossa condição humana.

Carregou os nossos erros, pecados e culpas e respetivos castigos, sem qualquer atitude de revolta.

E o caminho que nos aponta é o de não responder à violência com violência, mas sim o da obediência no sofrimento, o que implica sofrer com todos os que sofrem e carregar com as consequências dos pecados e outros males praticados, mesmo sem culpa própria.

 

Mas é sobretudo o drama da Paixão e Morte do Senhor, cujo relato acabámos de escutar, na versão do Evangelista S. João, que vem esclarecer as situações difíceis da nossa vida e propor-nos os caminhos que devemos seguir, principalmente quando a dor, o sofrimento injusto ou a própria morte nos  atingem.

 

Vejamos, então, o que nos diz a Paixão e Morte de Cristo sobre tudo isto.

 

É resultado de uma entrega pessoal, sem limites e livre, que ele faz da sua vida por uma causa superior. Podia ter fugido, enquanto Judas e os soldados que o procuravam prender caíram por terra. Não o fez e seguiu em frente.

Jesus diz-nos, assim, o que é viver; porque viver nunca é guardar a vida só para si, para seu bem individual, mas sim para bem de todos e com a vontade decidida de partilhar as situações difíceis de todos.

 

Ele suportou traição de Judas assim como a dor indizível da negação de Pedro. Suportou a flagelação, a coroação de espinhos e os maus tratos do Pretório de Pilatos e no caminho para o Calvário, com. a cruz às costas. Não respondeu às acusações injustas e caluniosas dos responsáveis judeus.

Com clarividência e dignidade impressionantes, apresentou-se diante do Sumo sacerdote e depois diante de Pilatos, a cuja sentença injusta se sujeitou. Da boca dele ouviu por três vezes o reconhecimento da sua inocência sem a consequente coragem para o libertar.

E suportou com invulgar serenidade o ódio dos responsáveis judeus que pediam a sua morte e ameaçavam Pilatos, se não atendesse este seu pedido iníquo. Pilatos não teve coragem para cortar a direito e respeitar a verdade e a justiça,  mas cedeu à pressão iníqua da multidão manipulada, entregando-o para ser crucificado.

 

E Jesus, carregando com a cruz para o Calvário, encaminhou-se para a consumação do mandato que recebera do Pai, como no-lo dizem as últimas palavras que pronunciou, antes de expirar: “Tudo está consumado”.

Mas,  antes disso, ainda teve força para nos entregar, através do discípulo amado, a sua Mãe para ser a nossa Mãe.

E deixou-nos o seu lado aberto, de onde corre sangue e água, segundo atesta quem foi testemunha direta, o discípulo amado S. João. Este Sangue e esta Água, de facto, representam, por um lado, o conforto da Igreja e do seus sacramentos oferecido a to­dos; e, por outro, a força que nos impele sempre para vivermos a nossa vida como Jesus a viveu.

 

3.Voltando às realidades muito humanas e transversais a todos de onde partimos e colocando-nos diante do drama da Paixão e Morte de Cristo, sentimos a urgência de enfrentar com respon­sabilidade os nossos erros e pecados e os dos outros, como  também todas as suas consequências.

As culpas temos de as levar sempre a sério, em todas a situações, principalmente quando geram consequências de sofrimento, sobretudo para os inocentes.

Para bem de todos a culpa não pode nunca morrer solteira, porque as consequências dos erros e males praticados pedem reparação até ao limite do possível.

 

Isto é o que pedimos também aos tribunais, cujas sentenças têm de pretender, mais do que aplicar castigos, recuperar as pessoas para o caminho do bem, no que têm de ser completados pelos estabelecimentos de reclusão.

De facto, identificar um criminoso, julgá-lo e condená-lo é, sem dúvida, um ato muito positivo para toda a sociedade.

Mas recuperá-lo, na sua dignidade inalienável de pessoa humana, passando a ter condições para assumir responsabilidades na construção do bem de todos é ainda muitíssimo mais importante e louvável. E é isso o que todos temos de pretender, em vez de colocar no seu rosto a o estigma da condenação sem mais, que pode trazer a morte antes do tempo.

Foi o que Jesus fez, ao carregar com as culpas da multidão e suas consequências, sob o madeiro da cruz.

 

Finalmente, sabemos que o perdão dos inimigos e a vontade de perdoar sempre e em todas as circunstâncias, como o fez Jesus ao dizer – “Pai perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” – são o único caminho que leva à paz, um bem essencial de que todos precisamos.

 

A Paixão e a Morte do Senhor são mistério que nunca é demais meditar. É o que nós vamos continuar a fazer durante o silêncio desta Sexta-Feira Santa e também no silêncio do dia de amanhã, Sábado Santo, onde a própria Liturgia fica calada, até à Vigília Pascal.

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda

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