Discurso de abertura da 197ª Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa

D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa

Foto Lusa/Rui Miguel Pedrosa

 

  1. Saúdo cordialmente os Senhores Arcebispos e Bispos e demais participantes na nossa Assembleia Plenária. Saúdo especialmente o Senhor Núncio Apostólico, D. Ivo Scapolo, que o Papa Francisco nos enviou recentemente como seu representante. Desejo-lhe as maiores felicidades no desempenho da sua missão junto do Estado e da Igreja em Portugal.

Saudação especial envio para Roma, ao novo Cardeal, D. José Tolentino, tão presente junto de nós pelo excelente trabalho que aqui realizou e pelo que agora prossegue na Santa Sé, ligando com especial oportunidade evangelização e cultura.

Boas vindas endereço ao Senhor D. Vitorino Soares, novo Bispo Auxiliar do Porto, cujas comprovadas qualidades tanto beneficiarão a Diocese e esta Conferência Episcopal.

No passado mês decorreu em Roma a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazónica. Constituiu um contributo eclesial relevante para a concretização duma “ecologia integral”, tão ameaçada naquela grande região, como noutras latitudes. Ecologia integral significa cuidado pela criação na sua globalidade, onde a natureza exterior e a humana são respeitadas e promovidas como um todo, sem reduções nem explorações ilegítimas. A presença da Igreja naquela realidade sociocultural específica foi também objeto de apreciação e propostas, a que o Santo Padre dará seguimento oportuno.

  1. A nossa agenda destes dias tem alguns tópicos principais, que a seguir destaco. Primeiramente, a partilha do trabalho realizado e a realizar pelas Comissões Episcopais, que, com o Conselho Permanente e o Secretariado Geral, constituem o sujeito ativo e constante do serviço da CEP à Igreja em Portugal. É um trabalho da maior relevância, que garante e apoia, a este nível, com generosidade e competência, muito do que eclesialmente se faz.

Faremos a apreciação final da tradução portuguesa do Missal Romano. Fruto do trabalho da Comissão Episcopal da Liturgia e dos seus colaboradores, formulará a oração litúrgica entre nós e noutros países de língua oficial portuguesa, segundo a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II e o Missal de São Paulo VI, que com tanto acerto retomaram a tradição orante da Igreja, no que tem de mais autêntico e perene.

A Jornada Mundial da Juventude, a desenrolar em Portugal no verão de 2022, volta à agenda da nossa Assembleia, como certamente acontecerá também nas seguintes, dado o relevo que tem para as dioceses portuguesas, enquanto oportunidade e desafio. Oportunidade evangelizadora, como requer o Santo Padre e nós todos com ele. Desafio, pelo que representa em qualidade e quantidade de objetivos a alcançar e de recursos a obter, como nunca aconteceu entre nós e para a multidão juvenil que acorrerá do mundo inteiro. Também para o País e para além dos limites confessionais, será uma boa altura de rejuvenescimento sociocultural.

  1. Aludo ainda a dois acontecimentos recentes: o Ano Missionário, que concluímos em outubro; e a canonização de São Bartolomeu dos Mártires, que ontem celebrámos em Braga.

Na nossa Nota Pastoral “Todos, Tudo e Sempre em Missão”, nº 6, escrevemos o seguinte: «Estas dimensões de oração, reflexão e ação propostas pelo Santo Padre, assim como o tema do Dia Mundial das Missões em 2019 – “Batizados e enviados: a Igreja de Cristo em missão no mundo” – estarão presentes nas várias iniciativas diocesanas ao longo de todo o Ano Missionário». Importa reter o que se fez neste sentido, tanto mais quanto se acentuou para um ano o que se pretende continuamente.

Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco tem impulsionado a conversão missionária das comunidades cristãs, que apenas se mantêm quando crescem nesta dimensão essencial do Evangelho, que é boa notícia a transmitir. A Palavra escutada e os sacramentos celebrados são essencialmente missionários, realizando a comunhão com Deus e com todos. Assim escreveu na exortação Gaudete et Exsultate, n.º 142: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária». Esta afirmação pontifícia pode e deve oferecer-nos um critério constante de avaliação do que fazemos – ou ainda não fazemos suficientemente.

Permito-me retomar, a propósito, o que disse na homilia de 20 de outubro, aqui em Fátima: O desafio cultural da missão é hoje grande, exigindo-nos mais capacidade de escuta e mais disponibilidade dialogante, ouvindo o que nos dizem e dizendo o que nos cumpre. Por vezes o “sair de casa”, em sentido missionário, pode significar virar a esquina e entrar num mundo bem diferente, ali ao lado. Isso mesmo reconheceu há uns anos a exortação apostólica pós-sinodal de São João Paulo II Ecclesia in Europa, n.º 46: «Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. […] Mesmo no “velho continente” existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes».

Tal não significa, de modo algum, esquecer ou enfraquecer os horizontes mais distantes da missão. Trata-se, isso sim, de potenciar mutuamente a missão ao perto e a missão ao longe. É consolador verificar como as comunidades onde a conversão missionária está realmente em curso tanto originam ações de missão longínqua como crescem na evangelização dos meios mais próximos.

  1. A canonização de São Bartolomeu dos Mártires relembra-nos uma altíssima figura da evangelização essencial – que, nalguns casos, quase foi também a primeira, face a grandes ignorâncias e contradições de fé e costumes com que se deparou.

A coincidência de estarmos na “Semana dos Seminários” acentua a importância que o ilustre Arcebispo de Braga teve na última sessão do Concílio de Trento (1562-1563), especialmente no que se refere à formação do clero secular, então muito incipiente. Assim dizia no Concílio, segundo o seu biógrafo: «E como é possível que cumpra um prelado em sua diocese o que o Apóstolo encomenda (Predica verbum, argue, obsecra, increpa: 2 Tim, 4) se não tiver pelas paróquias ministros suficientes que o ajudem? […] O que importa é que não seja cura de almas senão quem passar por exame e aprovação de homens de ciência e consciência» (Frei Luís de Sousa, A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 210-211).

Regressado a Braga, relata o mesmo biógrafo, «logo fez pôr mãos à obra com tal diligência que este foi o primeiro seminário que em Portugal, e porventura em toda Espanha, se edificou. […] Assim aconteceu que dentro de seis meses houve aposento capaz para sessenta colegiais. E não tardou o Arcebispo em os fazer prover de muitos moços de bom natural escolhidos de todo o arcebispado, que como boas plantas em viçoso jardim criadas à mão de cuidadoso hortelão, foram dando singulares frutos e provendo as igrejas de ministros letrados e virtuosos» (ibidem, p. 325).

Era o século XVI, hoje estamos no XXI. O repto era grande na altura, dada a necessidade já “moderna” de evangelizar com conhecimento de causa e espírito de missão. As dificuldades que São Bartolomeu encontrou foram muitas e de vária ordem. Mas conseguiu no seu tempo o que pretendemos também agora, de modo especial nos nossos Seminários e Escolas Teológicas: pastores à altura da evangelização que nos reclama. O Santo Arcebispo nos acompanhará decerto.

  1. Dedico o último ponto a um assunto sempre presente e que hoje nos merece redobrada atenção, como à sociedade em geral. Refiro-me à defesa e promoção da vida, da conceção à morte natural, em especial em relação à eutanásia.

A nossa Conferência Episcopal já tomou posição, sobretudo na Nota Pastoral Eutanásia: o que está em jogo? Contributos para um diálogo sereno e humanizador. Aí se afirma, além do mais: «A vida humana é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. […] O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. […] Por outro lado, nunca é absolutamente seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia. Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido da eutanásia é verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível» (nº 5-6). Na verdade, «não se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte» (nº 9).

A resposta às situações difíceis só pode e deve ser o desenvolvimento e a generalização desses cuidados, dentro duma sociedade e dum Estado que se tornem também “paliativos”, isto é, envolventes e cuidadores de cada pessoa, em especial das mais debilitadas. Este é o único caminho realmente humano e humanizador que devemos seguir e onde há muito para andar. Tanto mais quanto «não podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não tem acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento» (nº 11).

Isto mesmo disse recentemente o Papa Francisco, em 20 de setembro último, à Federação nacional das ordens dos médicos cirurgiões e dos dentistas italianos: «podemos e devemos rejeitar a tentação – também traduzida por alterações legislativas – de utilizar a medicina para apoiar uma eventual vontade que o doente tenha de morrer, prestando assistência ao suicídio ou causando diretamente a sua morte mediante a eutanásia. São modos apressados de lidar com escolhas que não são, como poderiam parecer, uma expressão de liberdade da pessoa, quando incluem o descarte do paciente como possibilidade, ou falsa compaixão diante do pedido de ser ajudado a antecipar a morte. Como afirma a Nova Carta para os Agentes no campo da saúde: “Não existe o direito de dispor arbitrariamente da própria vida, portanto nenhum médico pode tornar-se guardião executivo de um direito inexistente”» (L’Osservatore Romano, ed. port., 1 de outubro de 2019, p. 12).

Estas posições do magistério católico juntam-se a outras provenientes do campo ecuménico e inter-religioso. Assim se pronunciaram entre nós as várias confissões religiosas aquando do último debate parlamentar sobre o tema. Assim igualmente a Declaração conjunta das religiões monoteístas abramíticas [judeus, cristãos e muçulmanos] sobre as problemáticas do fim da vida, apresentada no Vaticano a 28 de setembro último, em trechos como estes: «As três religiões monoteístas partilham objetivos comuns e estão completamente de acordo na forma de encarar as seguintes situações acerca do fim da vida: a eutanásia e o suicídio assistido são moral e intrinsecamente errados e deveriam ser proibidos sem exceção. Rejeita-se categoricamente qualquer pressão e ação exercidas sobre os pacientes para os levar a pôr fim à sua vida. Nenhum profissional de saúde deveria ser obrigado ou submetido a pressão para assistir direta ou indiretamente à morte deliberada e intencional de um paciente através do suicídio assistido ou de qualquer forma de eutanásia […]. Encorajamos e apoiamos uma presença qualificada e profissional dos cuidados paliativos em todo o lugar e para todas as pessoas […]. Apoiamos leis e políticas que protejam o direito e a dignidade do paciente na fase terminal, para evitar a eutanásia e promover os cuidados paliativos».

Também da sociedade civil vêm sinais convergentes. No passado dia 26 de outubro, milhares de pessoas se manifestaram em várias cidades portuguesas em favor da salvaguarda e promoção da vida e contra a legalização da eutanásia. Manifestação que se tem repetido ano após ano, num crescendo de participação, mesmo que escassamente divulgada pelos media.

Recordamos igualmente a Declaração de cinco antigos Bastonários da Ordem dos Médicos, em setembro de 2016, quando afirma: «A Eutanásia, o Suicídio assistido e a Distanásia representam uma violação grave e inaceitável da Ética Médica (repetidamente condenados pela Associação Médica Mundial). O Médico que as pratique nega o essencial da sua profissão, tornando-se causa da maior insegurança nos doentes e gerador de mortes evitáveis». No passado mês de outubro, por ocasião da assembleia anual que decorreu na Geórgia, a Associação Médica Mundial reafirmou a sua oposição à eutanásia e ao suicídio medicamente assistido, sustentando que «nenhum médico deve ser obrigado a tomar decisões de encaminhamento para esse fim».

No atual momento sociopolítico português estas posições tão unânimes não podem deixar de ser tidas em conta por legisladores e cidadãos em geral.

Assim iniciamos a nossa Assembleia Plenária, pedindo a luz divina para bem servirmos, no que nos compete, a Igreja que somos e a sociedade que integramos.

Fátima, 11 de novembro de 2019

D. Manuel Clemente

 

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