Coimbra: Missa Crismal 2024

Caríssimos irmãos e irmãs!

A Missa Crismal constitui para nós, sacerdotes, uma ocasião muito especial da nossa vida e ministério: eleva-se dos nossos corações e dos nossos lábios um sentido hino de louvor e gratidão a Deus pela vocação a que fomos chamados. Sentimos e proclamamos que não somos nada diante da grandeza de Deus e da graça que nos concedeu, a de sermos cooperadores escolhidos para a realização da missão de anunciar a Boa Nova, de curar e consolar os nossos irmãos com o óleo da alegria.

Recordo como vós a emoção com que comecei a participar na Missa Crismal já na infância e na juventude. Recordo que perscrutava já o que poderia passar-se na mente e no coração dos sacerdotes que conhecia e como vislumbrava o mistério do amor de Jesus presente neles. Essa experiência profunda de vida adensava em mim o desejo de identificação com a vocação sacerdotal no meio das turbulências próprias daquelas idades: o apelo da vocação tornava-se mais forte e a decisão humana ia-se construindo, mesmo que à mistura com todas as reticências relativas à sua concretização na pobreza da nossa pessoa.

Recordamos como o amor de Deus fez caminho em nós e foi decisivo para que sentíssemos a graça de um chamamento que nos moveu e deixou completamente desarmados e sem argumentos. Hoje, e passados mais ou menos anos, continuamos a agradecê-lo ao Senhor e a renovar o nosso compromisso de fidelidade com toda a verdade e com amor. Hoje, continuamos a viver da certeza de que o Senhor é o “tudo” da nossa vida, o Alfa e o Ómega, o que é, que era e que há de vir, o Senhor do Universo, e apresentamo-nos diante d’Ele como o pequeno “nada” em que pode realizar a Sua obra.

Diante das tentações históricas e sociais que nos sugerem o sacerdócio segundo o modelo das estruturas de poder, ouvimos a voz do profeta que nos chama a sermos “ministros do nosso Deus”, ou seja, servos do nosso Deus.

Diante das tentações mundanas, mesmo que mascaradas de espiritualidade, que nos sugerem a importância da nossa pessoa e ministério, que nos levam a considerar a valentia das nossas decisões e a força das nossas ações, reconhecemos que o Espírito do Senhor está sobre nós e que Ele nos ungiu para realizarmos a obra de Deus.

Face à tentação de nos isolarmos como referência dentro do Povo de Deus, deparamo-nos com o testemunho de João Batista que, confrontado com a pergunta acerca da sua identidade, responde energicamente “Eu não sou o Messias” (Jo 1, 20) e diante da interrogação “És tu o profeta?”, reafirma, “Não”. E depois aponta para Jesus e diz: “Eis o Cordeiro de Deus”. Centra-se, pois, em Jesus Cristo como a sua única referência e aponta-O como a nossa única referência.

Do mesmo modo, os Apóstolos professam que são chamados e enviados para dar testemunho do que viram e ouviram, na certeza de que apenas Jesus Cristo pode proclamar o “Eu sou”, expressão da Sua revelação complementada pelas várias expressões da Sua identidade: o Filho, o Bom Pastor, o Caminho, a Verdade, a Vida, a Luz do Mundo, o Pão do Céu, a Videira, o Mestre, o Guia, o Senhor, o Salvador…

Nós, caríssimos irmãos sacerdotes, pela graça especial da ordenação sacramental, somos constituídos sinal sacramental de Jesus Cristo, o único Senhor e Guia da Igreja; e, como ministros ordenados, somos, ao mesmo tempo, constituídos servidores do sacerdócio comum de todos os fiéis em ordem à edificação da Igreja Santa de Deus.

Nesta celebração da Missa Crismal, convido-vos a aprofundar a espiritualidade da nossa condição de cristãos – bispo, presbíteros e diáconos – em ordem a um caminho sempre em construção da nossa identidade expressa pela nossa vida e ação. Sugiro que o façamos com base em três frases, em jeito de metáforas que procuram centrar-nos no essencial, de onde há de decorrer todo o alinhamento do nosso projeto de vida, do nosso programa de vida e da agenda da nossa vida.

O nosso projeto é Jesus Cristo.

Já o nosso ser de cristãos radica na graça recebida para nos identificarmos com Cristo em tudo, sem que nada de nós possa ficar de fora ou reservado para qualquer outro plano. O batismo na água e no Espírito cria em nós uma realidade nova, sacramental, que nos torna filhos no Filho e membros do Seu Corpo, que é a Igreja, a fim de a edificarmos, de a fazermos crescer e de ser santa.

Os sacerdotes, por um título especial de graça, recebemos não só a primeira unção do Espírito por meio do óleo do Crisma, mas também aquela que nos consagra e nos torna sacramentalmente ministros e servos de Deus e da Sua Igreja. Quando nos interrogamos acerca de qual o nosso projeto de vida, o que nos move e identifica como cristãos e ministros ordenados, encontramos fácil a resposta: é Jesus Cristo. O estilo de vida na simplicidade e na pobreza, a castidade, no caso do bispo e dos presbíteros, vivida em celibato, e a obediência à vontade do Pai, devem exprimir em nós uma identificação com Jesus Cristo dia após dia.

A cultura atual está marcada pelo individualismo e cada procura afirmar-se como o seu próprio projeto de vida, realizar-se a partir de si mesmo. O ministro ordenado aceita livremente que seja Cristo a conduzi-lo como seu discípulo, acolhe feliz a vocação de não ter outro projeto de vida senão o próprio Cristo.

Paradoxalmente, na mesma cultura atual assiste-se ao fenómeno de muitas pessoas entregarem a outros a gestão do seu crescimento a fim de tirarem o melhor partido das suas potencialidades, num mundo de concorrência pessoal e de busca de maior sucesso individual do que o dos outros. Especialmente nós, os ministros ordenados, temos por vocação deixar que Cristo seja tudo em nós, a fim de podermos, n’Ele e com Ele, ser sinal de bênção para os outros.

O nosso programa é o Evangelho.

Estamos num tempo marcado por ideologias, dentro e fora da Igreja. Algumas delas sugerem inclusivamente uma leitura do Evangelho como uma Boa Notícia construída e interpretada a gosto pessoal ou polarizada à volta de forças de pressão.

Os ministros ordenados são chamados a estar acima das lógicas humanas, pois a Boa Nova do Evangelho é uma mensagem unificadora da comunhão, a partir da revelação realizada por Jesus e tendo em conta a ininterrupta Tradição e o Magistério da Igreja.

Nenhum batizado está acima do Evangelho e os ministros ordenados encontram nele a regra e o programa das suas vidas, devendo procurar nele o único critério para o seu agir. Somos servos da Palavra feita carne, expressa nas palavras que nos comunicam Cristo e, juntamente com os sacramentos, no-l’O oferecem vivo e atuante na nossa história.

Somos os primeiros a incarnar a vocação e a missão de nos submetermos ao Evangelho como a expressão dos caminhos de Deus para a nossa vida, a vocação e a missão de o testemunharmos a muitos outros sob a forma de anúncio a fim de que seja o nosso e o seu programa de vida. É pela iluminação do Espírito Santo que guia a sua leitura, meditação e oração, que O conhecemos em profundidade e que dispomos o coração para o acolher, para viver n’Ele e para O anunciar. Não há para nós outros critérios nem outro programa de vida, porque Ele é a Palavra de Deus, que nos converte à vontade salvadora de Deus.

A nossa agenda é a Igreja.

Os ministros ordenados estão sujeitos à vulnerabilidade da sua condição humana e às muitas agendas que silenciosamente entram no espaço das suas vidas. Somos também nós, potencial ou realmente reféns da ditadura do relativismo teológico, espiritual e pastoral, bem manifesta no “eu penso”, “eu acho”, “eu gosto”, “eu quero”, relativismo esse que nos pode conduzir à afirmação de agendas pessoais ou de grupo em ordem ao exercício do ministério ordenado.

É muito tentador romper a unidade e a comunhão da Igreja com argumentos de conveniência pessoal, cultural ou social, com a defesa velada de um estatuto de poder mais do que de um serviço, por vezes com a aparência de uma piedade programada para justificar as nossas situações de vida.

O ministro ordenado não tem uma agenda própria. A sua agenda é a da Igreja que serve com todas as suas forças, sem outra intenção nem vontade do que a de dar a sua vida em atitude de gratidão infinita pela vocação a que amorosamente foi chamado.

Mesmo na pastoral, na liturgia, na espiritualidade ou na caridade, é a agenda da Igreja e não a nossa que nos tem de mover. Tudo isso deve ser sentido e vivido como ação da Igreja, serva de Jesus Cristo, submissa ao Evangelho e, enquanto iluminada pelo Espírito Santo, dotada da faculdade de conduzir a humanidade ao encontro com o Deus, que salva.

Irmãos e irmãs, agradeçamos diariamente a Deus os sacerdotes que nos deu e rezemos todos pelos sacerdotes da nossa Igreja Diocesana, rezemos pelos sacerdotes de toda a Igreja, para que encontrem no coração de Deus o verdadeiro amor, única segurança e força para as suas vidas.

Caríssimos irmãos sacerdotes, que o Senhor encontre em nós a simplicidade, humildade e fé, que nos levem a ser pastores felizes, à maneira de Jesus, que dá a vida pelos seus amigos. E que o Óleo Santo do Crisma continue sempre a exalar em nós o perfume da graça do amor com que fomos ungidos.

Coimbra, 28 de março de 2024
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra

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