Cinema: Mel

Irene vive uma vida solitária e agitada entre a sua casa à beira mar e a casa dos outros: doentes terminais que visita para, clandestinamente e conforme o que acredita ser sua missão, conceder-lhes um final de vida digno. Por determinação dos próprios e com a sua ajuda, ‘Mel’, nome de código pelo qual é conhecida, organiza um ritual de passagem onde cabem a música e uma declaração de termo à vida, concretizado com a administração de um barbitúrico em dose letal, de uso veterinário.

Certo dia, chamada a casa de um velho arquiteto igualmente solitário para a mesma função, descobre que aquilo que fundamenta a vontade do sr. Grimaldi em pôr termo à vida não é uma doença terminal sem prespetiva médica de recuperação, mas uma visão terminal e sardónica sobre a utilidade da sua vida.

O fino limite que separa este dos outros casos que até então não questionava, agora tornado evidente, e a inquietude provocada pela explícita ausência do sentido da vida, algo camuflado e latente em si própria, transformam a missão de morte de ‘Mel’ numa missão de vida: decididamente, tem que salvar Grimaldi.

Interessante e corajosa opção de uma realizadora estreante italiana, Valeria Golino, ‘Mel’ coloca-nos perante o tema do suicídio assistido sem qualquer propósito evidente de subscrição, nem favorável nem desfavorável a tal prática. Antes que a mera premissa de isenção sobre a prática possa incomodar qualquer convicção de um espetador, a abordagem é pertinente e apela à nossa atenção.

Primeiro, por evidenciar a sua existência, dizendo-nos que enquanto acompanhamos em estado de alerta os movimentos pró e contra legalização discutidos em sede ética, política e religiosa, o suicídio assistido de facto acontece. Deixando-nos assim não mais próximos mas menos alheados de uma prática cujo caráter clandestino não nos permite sequer aperceber da possível extensão. É este o primeiro apelo do filme, a que nos podemos considerar chamados, passando de espetadores a atores, na atenção a estas personagens que poderão ser espelho de alguém mais próximo do que sequer imaginamos.

Depois, porque mesmo sem atribuição de juízo de valor e sem explorar exaustivamente os limites éticos da ação de Irene, o filme não banaliza a prática com um registo suave que tente não beliscar o conforto com que nos sentamos ante o ecrã, ou o tema.

Pelo contrário, a opção da realizadora é a de escavar mais fundo, colocando no sentido da vida e na íntima construção desse sentido pela implicação humana – a relação, o princípio de transformação, de alívio do sofrimento e de passagem, no caso, da morte para a vida. É esta a transformação que verdadeiramente se opera em Irene, através de Grimaldi e é esta a transformação que nele ela procura operar, restituindo-lhe valor, amor próprio e esperança.

Ausente de uma referência explícita a Deus e independentemente do desfecho do filme, é quase impossível não sentir o sopro que impele uma ex-modelo, atriz, nascida no seio de uma família de pintores e músicos onde se combinam sangue e cultura germânica, grega, italiana, francesa e egípcia, a realizar a sua primeira longa metragem sobre temas tão delicado e atuais. Que antes do suicídio assistido são o da solidão, o da débil implicação humana, uns com e para os outros, a ausência de significado e sentido da vida e o estado terminal de sofrimento em que tantos esses colocam.

Margarida Ataíde 

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