Abusos sexuais: Escala geográfica e prática regular implicam olhar para problema como «sistémico» – Alfredo Teixeira

Livro «Uma anatomia do poder ecclesiástico» foi apresentado na Universidade Católica Portuguesa, durante I «Encontro do Cuidar»

Foto: Agência ECCLESIA

Lisboa, 29 jun 2022 (Ecclesia) – O antropólogo Alfredo Teixeira, docente da UCP, disse hoje que os abusos sexuais ocorridos dentro da Igreja “não podem ser vistos como resultado de comportamentos individuais”, mas como “uma doença do sistema”.

“A dimensão tem escala geográfica e uma regularidade que nos leva a olhar para o problema como sistémico. Não podemos falar apenas de comportamentos individuais. Na expressão do teólogo checo Tomáš Halík, trata-se de uma doença do sistema”, indicou o professor, um dos autores do livro ‘Uma anatomia do poder eclesiástico’, apresentado esta manhã na Universidade Católica Portuguesa.

No texto da sua autoria, ‘Instituição, abusos e vítimas: critica da razão institucional’, o antropólogo lamenta que “a ocultação e invisibilidade da vítima” fosse uma prática comum e reconhece que “no plano institucional e do ponto de vista da racionalidade”, “as vítimas são muito incómodas”.

“Quando o fenómeno torna mais evidente nas instituições eclesiásticas, parece que o protagonismo foi dado aos abusadores. A descoberta do fenómeno não trouxe a prioridade de dar voz à vitima. Há uma racionalidade de auto defesa que passa pela invisibilidade da vítima”, advertiu.

Ouvimos argumentos sobre o fenómeno acontecer em todas as instituições, e que até podem ser a instituições eclesiásticas aquelas onde acontece menos – as famílias são indicadas como o contexto mais frequente. Mas estamos numa situação em que a relação é instituída a partir de uma realidade distinta: o padre não é um treinador de futebol, mas tem um contexto de paternidade espiritual, isto é um abuso espiritual, tornando-se mais destrutivo também do ponto de vista social”.

O coordenador da obra, o padre João Eleutério, explicou a intenção de realizar uma “autocrítica” com a publicação, que conta com vários autores.

“Quando se fala do abuso ouço muitas coisas de quem está fora do edifício, de quem não entra. Queríamos ouvir várias vozes, que refletissem também a partir da Teologia, para perceber o que está em jogo, as causas, para enfrentar o problema”, precisou.

A investigadora Rita Mendonça Leite, por sua vez, abordou o tema “Clericalismo e anticlericalismo como ‘agentes de mudança’: uma perspetiva histórica a partir da Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”, sobre os movimentos “de reforma e contrarreforma permanente na Igreja, de clericalização e anticlericalização”.

“Os abusos sexuais na Igreja resultam de um desvio, que constitui uma cultura, e trata-se de uma questão sistémica que remonta aos século II e III”, sustentou.

A expressão “poder eclesiástico” foi ainda alvo de análise e o padre João Eleutério deu conta de como a “figura de poder” ganha “diferentes contornos em diversos locais”, encontrando “igrejas locais sem maturidade para perder a figura do padre, associada ao poder”, com consequências na incapacidade de fazer autocrítica e no clericalismo não exclusivo dos clérigos.

“A expressão poder eclesiástico deveria ser substituída na Igreja por expressões de serviço. Essas expressões de serviço têm história, contextos particulares em que se desenvolvem. Fruto do desejo da reforma que a Igreja vive, o que se percebe é a busca de novas formas de serviço que privilegiem a consciência de que somos todos batizados”.

Alfredo Teixeira lamentou ainda a falta de mudanças de fundo.

“Mudam-se as palavras para enfrentar os problemas, mas sob o ponto de vista simbólico as alterações não acontecem”, referiu.

A UCP acolhe hoje o I ‘Encontro do Cuidar’, “por uma cultura de proteção e bom trato de crianças e jovens”, com a presença de especialistas e investigadores.

“O projeto CUIDAR é um projeto de investigação e extensão universitária promovido pelo CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, que tem como objetivo apoiar as organizações católicas que trabalham com crianças e jovens no desenvolvimento de uma cultura de bom trato usando abordagens centradas na criança e no seu bem cuidar”, informa a organização do evento.

LS

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