A Páscoa é a nossa Pátria

Nota Pastoral de D. António Couto na proximidade das celebrações comunitárias

Nascidos na Páscoa de Jesus

  1. Atravessamos ainda o país da Páscoa. E bem sabemos que quer os judeus em geral quer os discípulos diretos de Jesus olhavam para a Páscoa com uns grandes olhos esbugalhados, capazes de vislumbrar a chegada de Elias, que vinha com a missão de preparar os corações para a chegada iminente do Messias. Elias era o precursor de um mundo novo. O Messias, ou o Cristo, viria carregado de esperança para alentar e alavancar o povo eleito de Israel entre todas as nações. Tudo, nos traços do seu retrato, era sucesso, vitória, paz, saúde, prosperidade, alegria nova e incontida. Mundo novo era a bagagem que trazia para oferecer. Os discípulos de Jesus seguiam-no com entusiasmo. No seu íntimo, todos pensavam que Jesus era o Messias, o Cristo, o enviado de Deus, o vencedor do sofrimento e da dor. «Tu és o Cristo» (Marcos 8,29), grita o impulsivo Pedro, em nome de todos, com sincera convicção e entusiasmo. Ao ouvir isto, que, na boca de Pedro, significava triunfo, riqueza, sucesso, poder, Jesus mandou-os calar a todos com invulgar severidade (Marcos 8,30), e, saltando fora do quadro traçado, começou a ensinar que era preciso que o Filho do Homem sofresse muito, fosse rejeitado e morto, para depois ressuscitar ao terceiro dia (Marcos 8,31). Pedro ainda resistiu e insistiu no seu estafado e interesseiro raciocínio (Marcos 8,32), mas Jesus recriminou-o fortemente, impedindo-o de lhe estorvar os movimentos (Marcos 8,33), e desafiando-o, a ele e a todos, a «dizer não» a si mesmos, às suas convicções messiânicas fáceis e caducas, a pegar na sua cruz todos os dias, e a segui-lo com determinação (Marcos 8,34).

 

  1. Já sabemos que as coisas azedaram, e quando estes discípulos de Jesus começaram a ver levantar-se a cruz no horizonte, todos desistiram e foram-se embora (Marcos 14,50). Como quem diz: afinal, enganámo-nos; não era este; vamos ter de esperar por outro!

 

  1. O certo é que, quando o Espírito arremeteu sobre eles e acendeu um lume novo dentro deles (Atos 2,1-12), tudo foi virado do avesso, e vieram para a rua dizer com ousadia e desassombro que, afinal, este Jesus que vós crucificastes, Deus ressuscitou-o de entre os mortos, e constituiu-o Senhor e Cristo, e disto nós somos testemunhas (Atos 2,36; 3,15).

 

  1. Fica claro. A Escritura Santa é urdida com dois fios: um, são os nossos brilhantes raciocínios, sonhos, visões, programas, projetos, ambições; o outro, é o modo de ver de Deus, que deixa entrever quase sempre um mundo novo, novo mesmo, sem termo de comparação, ainda não catalogado no arquivo dos nossos conhecimentos adquiridos e nos anais das nossas conquistas. Basta ouvir o discurso que Isaías põe na boca de Deus, para nos apercebermos deste desconcerto: «Com efeito, os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos» (Isaías 55,8).

 

A fé e a ciência lado-a-lado

  1. Como nós nos desviámos das pautas da música de Deus! Como nos transviámos! Mas podemos sempre regressar, procurar os caminhos ajustados, acertar processos, dado que Deus nos deixou um mapa preciso e precioso na nossa inteligência, vontade, sensibilidade, capacidade de discernir e decidir. Quero dizer: nem fideísmo nem cientismo. O fideísmo é aquela maneira de viver pensando que a fé não é da ordem da razão, mas apenas do sentimento, um assentimento do sentimento, portanto e só. Em nome desta conceção de fé cega e fechada, quantos desastres aconteceram ao longo da história, e ainda hoje toldam o olhar de grupos extremistas radicalizados! O cientismo consiste em entregar todas as chaves da vida e da nossa casa à ciência e à técnica, vendo nelas «o deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4), que resolve todos os nossos problemas. Também este modo de ver e de viver se revelou desastroso e abriu incontáveis valas comuns. Serve aqui o juízo de Max Horkheimer e Theodor Adorno, com data de 1947: «O iluminismo, no sentido mais amplo de pensamento em contínuo progresso, perseguiu desde sempre o objetivo de libertar os homens do medo e de os tornar donos. Mas a terra inteiramente iluminada resplandece, ao contrário, de triunfal desventura!».

 

  1. Serve este estendal para olharmos com mais atenção para este tempo marcado pela tempestade da Covid-19, que praticamente sem aviso nos caiu em cima, arrumando para o lado as nossas agendas, fechando as nossas portas e deixando a nu as nossas limitações. Dizem uns: afinal, Deus e as Igrejas, a fé e a oração não servem para nada, não nos trazem nenhum proveito; dizem outros: e nós que pensávamos que a ciência resolveria todos os nossos problemas! Nem os crentes verdadeiros perderam os seus créditos, nem o saber dos cientistas foi pela água abaixo! O mapa e a bússola para os novos caminhos a trilhar não estão só nas mãos dos crentes que rezam de verdade ou dos cientistas que se esmeram nas suas pesquisas. Deixou-os Deus nas mãos do ser humano, do crente e do sábio, e todos devem lutar, cada um com os dons que recebeu, para tornar este mundo mais belo e saudável e habitável. Deus acredita em nós: por isso, ao criar-nos livres, inteligentes e voluntariosos, repartiu connosco o seu poder e a sua sabedoria, fundando a oração e a ciência, e até não nos impedindo de podermos fazer mau uso dos seus dons. Ao criar-nos assim, responsáveis e livres, convenhamos que Deus correu riscos, mas Deus acredita em nós, confia em nós. Lutemos, pois, com a inteligência e o coração, com a oração; lutemos, pois, com os dados por Deus dados, nos hospitais e laboratórios. De resto, os santos sempre souberam arrastar o mundo para o bem e o bem para o mundo, vergando, para tanto, o coração de Deus. E os verdadeiros cientistas, crentes e não crentes, mas sempre sensatos e sensíveis e humildes, a cada passo são surpreendidos com o incrível e o ainda não explicável!

 

  1. É bem verdade, podem testemunhá-lo os santos e os verdadeiros homens da ciência: o pão e o sonho que alimenta a vida, Deus o dá aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2; cf. 1 Reis 3,5). Eu próprio disse e escrevi a meio do ano passado de 2019: «Sendo a vida, então, um contínuo estado de emergência, o bem que deve ser feito agora assume um carácter de extrema urgência». Têm-me perguntado: como é que eu disse e escrevi isto naquela altura, quando ainda não se pressentia nada? Se não se via nada, era por causa do escuro que fazia. Tenho dito e escrito muitas vezes que atravessamos “a noite do mundo”. E de noite, pouco se vê. É preciso perguntar com Isaías: «Sentinela, quanto resta da noite? E a sentinela responde: Já desponta a manhã, mas é ainda noite» (Isaías 21,11-12). É, portanto, necessário que nos postemos sobre a fresta da porta entreaberta (Salmo 106,23), para que algum pingo de luz possa ainda alumiar o nosso olhar, e para impedirmos que a porta se feche.

 

Preceitos práticos

  1. Se Deus quiser, a partir do último fim-de-semana de maio, dias 30 e 31, Sábado e Domingo, vamos poder voltar a dar corpo às celebrações nas nossas igrejas, sobretudo a Eucaristia, tendo presentes as Orientações de 8 de maio, emanadas da CEP, e respeitando também as normas de segurança sanitária recomendadas pela DGS, e ilustradas nos cartazes para o efeito preparados.

 

1) Chama-se a atenção sobretudo para quatro momentos: a entrada e saída da igreja (1 e 2), a correta e ordeira ocupação do espaço dentro da igreja (3), os passos para a comunhão (4). 

2) É recomendável que em cada igreja haja pequenas equipas de acolhimento e acompanhamento, e que cuidem da higienização à entrada, e antes e depois da comunhão.

3) De acordo com as normas sanitárias que devemos cumprir, já sabemos que a participação presencial nas celebrações será reduzida a cerca de 1/3.

4) Fazemos, por isso, saber que, enquanto durar este regime sanitário, para o cumprimento do preceito Dominical, valem também as celebrações da Eucaristia nos dias de semana. Convidamos, por isso, os fiéis mais idosos e pertencentes a grupos de risco a procurarem mais estas celebrações, sendo previsível que nelas haja um menor número de fiéis.

5) Higienização, distanciamento social e uso de máscara já fazem parte do nosso quotidiano, e devemos mantê-los em todo o tipo de celebrações comunitárias (batismos, matrimónios, exéquias e outras celebrações eventuais).

 

6) Celebrem-se com dignidade e simplicidade, sempre que haja solicitação para isso, os Sacramentos da Reconciliação e da Unção dos Doentes, cumprindo sempre também as normas sanitárias em vigor.

7) Dado o seu caráter particularmente festivo, procurem adiar-se, sempre que possível, as celebrações de batismos, primeiras comunhões e matrimónios.

8) Dado o seu caráter muito próprio, ficam adiadas para tempo oportuno, que Deus nos há de dar, as Visitas Pastorais, bem como a celebração do Sacramento do Crisma.

9) Mantendo-se as atuais circunstâncias sanitárias, temos de compreender que, para o melhor bem de todos, devem continuar suspensas peregrinações, procissões, festas, romarias, concentrações religiosas, acampamentos e atividades similares.

 

Saudações com gratidão, emoção e esperança

Neste tempo em que «já desponta a manhã, mas é ainda noite», quero saudar com muito afeto as 223 comunidades paroquiais da nossa Diocese de Lamego, em todos e cada um dos seus membros fiéis, desde as crianças, privadas de tantas brincadeiras, até aos jovens, que mexeram com tudo quanto havia na sua bela Jornada acabada de realizar, até aos pais e avós, e aos seus párocos, a quem agradeço a presença e proximidade, e estimulo a continuar a lutar com entusiasmo e criatividade.

Tenho de saudar, não por dever, mas por emoção e gratidão, os nossos queridos velhinhos e fragilizados, que têm estado confinados nos Lares espalhados pelo território da nossa Diocese. Que o Senhor vos abençoe, meus amigos e meus irmãos! Estendo esta saudação muito sentida e comovida aos cuidadores de todos os dias, que todos os dias e noites velam, e sabe Deus com que meios, por estes irmãos e irmãs que habitam os nossos Lares. E deixai que estenda ainda este manto de muito apreço e gratidão aos jovens voluntários que, vindos de outras partes do nosso país, quiseram dar uma mão de amor aos velhinhos que de saúde e de amor estavam privados nos nossos Lares. Lembro particularmente os jovens que vieram dar essa mão de amor no Lar de Nossa Senhora da Veiga, em Foz Côa, acompanhados pelo P. Bernardo, no qual saúdo o voluntariado, discreto e carinhoso, de outros sacerdotes que se fizeram o próximo do irmão caído neste novo caminho de Jericó que atravessámos. 

 

Em tudo e sempre, sobretudo nesta hora de luta que reclama de nós todo o empenho e solicitude, contai sempre com o vosso bispo e irmão, + António, que a todos acompanha e abençoa. E que Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, neste mês que é seu, nos proteja com o seu olhar carinhoso.

 

Lamego, 17 de maio de 2020, Domingo VI da Páscoa

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