2023: «Vivemos tempos economicamente difíceis, politicamente confusos, ideologicamente radicalizados» – José Miguel Sardica

Guerras, abusos sexuais, JMJ, sinodalidade e governabilidade em Portugal marcam olhar do docente da UCP sobre ano que passou

Foto Agência ECCLESIA/MC

Lisboa, 29 dez 2023 (Ecclesia) – José Miguel Sardica, docente da UCP, aponta a necessidade urgente de “sentar à mesa” interlocutores “válidos” para que o conflito entre Israel e o Hamas não alastre ao Médio Oriente e a solução de “dois estados” seja reconhecida.

“Tem de haver uma política que obrigue a sentar à mesa interlocutores válidos, mas é preciso que a ONU, a União Europeia, os Estados Unidos da América, a Santa Sé, as comunidades islâmicas locais, ou seja, chamar à responsabilidade as comunidades muçulmanas para que atuem na contenção dos seus e se volte a colocar a solução dos dois Estados”, pede o professor universitário.

O historiador lamenta a “ordem internacional cada vez mais frágil” com apelos a um cessar-fogo que não foi concretizado dado os interesses de países membros do conselho da ONU.

“A grande incógnita não é saber se a guerra se vai resolver em janeiro, em fevereiro, em março, não é isso: é saber até que ponto é que as eleições nos Estados Unidos, que serão apenas em novembro de 2024, vão introduzir aqui uma variável de continuidade ou de recuo no apoio à Ucrânia, e já há sinais disso. E, sobretudo, perceber como é que a guerra em Gaza vai evoluir ou não, porque a diplomacia norte-americana, apesar de apoiar a causa sionista, tem feito um esforço que eu acho que é notável e de louvar, a exigir a Israel uma certa contenção”, indica.

José Miguel Sardica alerta ainda para o antisemitismo que tem alastrado, com “imagens de estrelas judaicas pintadas em sinagogas, em casas”, manifestações a que não se assistia “há 90 anos”.

“O conflito entre Israel e o Hamas tem um potencial de contágio no Médio Oriente que nos deve deixar alarmados. O Hamas representa o Islão, mas não representa um Islão moderado e um Islão que, numa perspetiva de encontro civilizacional e até interreligioso, se possa sentar com os judeus e possam finalmente dar àquela terra martirizada desde há 2000 anos, aquilo que era a mensagem bíblica, um povo eleito, mas um povo eleito vivendo em paz, com as comunidades que lá vivem, muçulmanos, judeus, ou seja, vivendo ou coexistindo em paz”, explica.

Convidado a olhar para alguns acontecimentos que marcaram o ano de 2023, José Miguel Sardica entende que, sobre os abusos sexuais cometidos na Igreja católica, existe, neste momento, “uma exigência ética” que, espera, esteja a “alastrar” a outras áreas sociais e indica que “apesar de alguma controvérsia” a partir da apresentação relatório da comissão independente, “a Igreja deu um passo muito importante e soube ler os sinais dos tempos”.

“Acho que o mais importante aqui é a humanidade, ou seja, é dizer às pessoas, avancem sem medo, porque nós estamos aqui para ouvir e para tentar, dentro do possível, reparar aquilo que é moralmente quase irreparável. Vamos ter esperança que o tempo e que a compreensão ajudem as vítimas a uma reconciliação interior”, suscita.

No âmbito eclesial o professor da UCP refere-se ainda à realização da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, para recordar a capacidade comunicativa do Papa Francisco e o “potencial agregador que a fé tem”.

Eu acho que nós vivemos tempos difíceis, economicamente difíceis, politicamente confusos, ideologicamente radicalizados, e, portanto, o discurso de encontro, de comunhão, de calma, de discernir o bem ou o mal, discernir o que é possível fazer para construir sociedades mais coesas, que assistimos nas JMJ tenham sido uma espécie de campo de formação para todos aqueles jovens que é possível construir um diálogo e é possível viver em paz”.

“Naquele clima de encontro, naquele clima fraternal, onde não há diferenças, onde não há julgamentos, onde ninguém se pergunta de onde vens ou quem és, a não ser para dizer és bem-vindo. Eu espero que a Igreja, e não só, mas a Igreja lidera um processo, de capitalizar e de maximizar a energia que as jornadas cá deixaram”, acrescenta.

Para José Miguel Sardica as JMJ foram vividas em clima de “sinodalidade”.

O professor acredita que a dinâmica sinodal ganha similaridades com um concílio e indica que o Papa Francisco deixará um legado: “A sinodalidade é um instrumento importante e deixará um legado de uma Igreja devolvida à humanidade, desclericalizada, desinstalada, que eu acho que é muito importante num século XXI, porque o facto é que a pobreza, a guerra, o radicalismo, a intolerância estão de volta – e estão de volta a um nível que requer uma Igreja muito mais atenta aos instrumentos para combater a pobreza, a intolerância, o radicalismo, e isso tem que ser a Igreja com todos”.

O docente da UCP olha ainda para o quadro eleitoral que está a ser preparado para março de 2024, com as eleições legislativas, após a queda do governo decorrente da demissão de António Costa, no dia 7 de novembro.

“O problema é que nós temos vindo a desenvolver uma situação política que resvalará para o pântano muito facilmente, porque o tempo em que a alternância era feita ao centro, e portanto era expectável que o governo fosse do partido A ou B, que construíram o sistema político em Portugal desde 1974, esse tempo acabou, nós estamos a ver um voto de protesto cada vez maior, tanto à direita, direita radical, como de queira chamar, com o fenómeno de Chega, como à esquerda, o Bloco tem a sua identidade, tem o seu eleitorado, tem as suas causas fraturantes”, num tempo em que “o PSD está eternamente em guerras internas e o PS a ter de arrumar a casa”.

Temendo não haver uma “solução estável em março” e o país atravessar uma “situação social muito complicada”, José Miguel Sardica indica ser necessário os partidos “afirmarem o que querem”.

“No ano em que estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril as pessoas também devem pensar nisso: que país é que querem, numa Europa – e vamos ter muitas eleições, em 2024 e em 2025 – e num mundo onde a democracia está sob ataque”, reconhece.

A conversa com José Miguel Sardica pode ser acompanhada no programa ECCLESIA, na antena 1, este sábado pelas 06h00.

LS

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