Coimbra: Natal no Serviço de Urgência

Das mãos que sustentam aos olhos que afagam o coração

Equipa multidisciplinar UCIC

É noite de Natal, família ainda reunida à volta da mesa, está na hora do próximo turno. Despedidas à pressa, lágrima no canto do olho, guardo o calor dos abraços apertados e as vozes alegres dos meus filhos que correm até à porta: feliz Natal mamã!

Na rua o frio corta, entro noutra dimensão. No silêncio da noite entrego-me a Cristo e peço-Lhe: ajuda-me a não errar, a ver em cada pessoa doente o Teu rosto, a amar como só Tu sabes amar.
Farda vestida, pronta para a missão! Pouco depois soa o alarme da sala de emergência, acaba de entrar uma doente em falência cardíaca grave, com risco de vida. Focados no essencial, iniciámos de imediato todas as manobras de suporte e estabilização clínica.

Logo que possível, falei com a filha que aguardava angustiada. Contou-me que a mãe já se sentia cansada há alguns dias, mas tinha feito questão de preparar a ceia de Natal para a família, em especial para os seus dois netos. Apesar das incertezas, procurei transmitir-lhe toda a informação com verdade, serenidade e empatia, tentando manter a luz da esperança.
Algum tempo mais tarde, os olhos esbugalhados de aflição deram lugar a um olhar azul profundo, o ritmo cardíaco tornou-se regular, a respiração tranquila, perfeitamente adaptada ao ventilador. Feliz, peguei na mão da minha doente e disse-lhe que estava a melhorar, o pior já teria passado. Sem poder falar, deixou cair uma lágrima, apertou a minha mão, e assim permanecemos, olhos nos olhos, coração a coração, numa sintonia de contemplação perfeita. Jesus nasceu nos nossos corações! Chorei de alegria e emoção, senti Jesus naquela sala fria, no meio de monitores, ventiladores e cateteres. Uma sala sagrada onde todos os dias lutamos até à exaustão por tantas vidas presas por um fio. Neste momento de contemplação, sinto a confirmação da minha missão – cuidar, amar e servir a pessoa doente.

Entro na sala grande ao lado, cheia de macas, e fico de coração apertado. Nesta noite permanecem na urgência apenas os doentes mais graves, sinto o olhar perdido de solidões abandonadas e tantas vidas que já não vislumbram a vida.

Num segundo olhar, emergem anjos vestidos de farda esfarrapada e chinelos nos pés, numa azáfama para a todos dar conforto, ternura e esperança. Médicos, Enfermeiros, Técnicos auxiliares de diagnóstico, Auxiliares de ação médica e Secretários – gente simples, que se entrega de corpo e alma ao serviço do próximo. Gente que suja as mãos, toca a dor, deixa-se ferir interiormente pelo sofrimento de pessoas com rosto, com história e com família como nós. Em cada gesto de cuidado e carinho, são testemunhas do amor e sinal da presença de Deus para cada doente.
Nesta noite de solidão nos hospitais, os profissionais são muitas vezes “as únicas mãos que sustentam a alma”, o único e, por vezes, o último olhar profundo de compaixão, de conforto emocional e espiritual para muitos doentes.

Porque amor a Deus e amor ao próximo são expressões de um único Amor, tenho diante de mim a mais perfeita das orações. Oração feita de encontro, entrega, compaixão, em cada toque, em cada olhar profundo, em cada gesto de delicadeza e ternura feitos na presença do Deus Menino, que veio ao mundo para dar sentido à nossa vida.

Terminado o turno, a felicidade da brisa fria no rosto, o sorriso de quem sabe que um Menino nasceu para nós neste e em muitos outros hospitais, nos lares, nas ruas da pobreza, na casa e no coração de cada um de nós. Um Deus que se fez Homem para nos ensinar a ser verdadeiros homens e mulheres à Sua imagem.

Sílvia Monteiro, Cardiologista,
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

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