LOC comemora duas décadas de combate ao trabalho infantil

“Empresa têxtil aceita criança dos 11 aos 13 anos”. Anúncios como este, colados nas vitrinas de lojas e cafés das vilas e cidades nortenhas, causaram em 1986 um “terramoto” de proporções inimagináveis, cujo epicentro foi registado no distrito de Braga. Uma mensagem de Natal da Liga Operária Católica (LOC), publicada em Dezembro desse ano, denunciava a utilização de crianças entre os dez e os 13 anos de idade nas áreas da confecção de vestuário e calçado, na agricultura e construção civil, depois dos seus militantes terem realizado a análise da realidade sócio-económica de uma região cada vez mais próspera, cujas empresas cresciam à custa dos baixos salários e de fundos estruturais. A notícia apanhou de surpresa ou por desconhecimento, ou por omissão, os governantes e empresários, deixou em “estado de choque” a opinião pública portuguesa e confirmou os maiores receios dos parceiros europeus. A comunicação social fazia avolumar a “bola de neve” na qual cabiam notícias sobre acidentes de trabalho que envolviam menores. Denunciavam-se mutilações, choques eléctricos em contexto de trabalho e mortes. «A RTP só mostrou imagens em Março de 1987, depois da BBC ter feito uma reportagem sobre o trabalho infantil em Portugal», recordam José Maria Costa e Américo Monteiro, que, abrindo um dossier repleto de recortes de jornais e revistas da época, garantem que a imprensa escrita foi mais diligente do que a estação de televisão pública. Os membros da LOC/ /MTC lembram que em 1986 existiam cerca de 200 mil crianças em contexto de trabalho e, passados quatro anos, durante um encontro promovido no Sameiro pelo Grupo Nacional de Acção sobre Trabalho Infantil (GNASTI), embrião da actual Confederação Nacional de Acção Sobre Trabalho Infantil (CNASTI), que reúne, além da LOC/MTC, a JOC, a Juventude Agrária e Rural Católica, a Associação de Ludotecas do Porto, a Acção Católica Rural, a Associação de Ludotecas de Famalicão, a Associação de Moradores das Lameiras, CGTP-IN, a UGT, CONFAP, e diversos associados individuais. Silva Peneda afirmava que, em 1987, quando a idade de acesso ao trabalho eram os 14 anos, existiam perto de 27 mil crianças, garantindo que o número estava «progressivamente a ser reduzido» e que só quem desconhecia ou pretendia distorcer a realidade portuguesa podia afirmar que o trabalho infantil estaria a aumentar. Colóquio evoca mudança de mentalidade O colóquio evocativo da Mensagem de Natal de 1986 que se realiza no dia 15 de Dezembro, às 21h00, na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, é o culminar de mais de duas décadas de denúncias e combate à exploração infantil. O Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, que já como Bispo Auxiliar de Braga nunca deixou de denunciar esta situação, preside à iniciativa, que torna presente um documento que, há duas décadas, foi uma autêntica “pedrada no charco”. Para José Maria Costa e Américo Monteiro, a acção da CNASTI e da comunicação social portuguesa foram, de facto, decisivas para a mudança de mentalidades e alteração do “processo de recrutamento e selecção de pessoal”. Televisões, jornais e revistas estrangeiras, tal como o “Der Spiegel”, “Time” e o “Sunday Telegraph”, também colocaram no fim da década de 80 e início dos anos 90 do século passado o trabalho infantil em Portugal no centro do debate, de tal modo que, em Setembro de 1992, em Inglaterra, o próprio Silva Peneda participou num debate do Canal Quatro da Televisão Comercial, cuja reportagem introdutória apresentava imagens de trabalho infantil no nosso país e graves denúncias do presidente da CNASTI. Alfredo Cardoso reportava a existência de 200 mil crianças, entre os oito e os 15 anos, a trabalharem nas indústrias da panificação, pedreira, calçado e têxtil, que, para manterem os preços baixos, dependiam do trabalho infantil. Mas, a opinião pública inglesa ficou chocada com a falta de condições de segurança e da perseguição perpetrada por algumas empresas a jornalistas nacionais e estrangeiros, alguns dos quais espancados à frente das próprias fábricas. «A CNASTI também recebeu ameaças», lembra José Maria Costa, acrescentando que os inspectores do trabalho também sentiam dificuldades no acesso às instalações e informações cruciais. Apesar disso, pensa que «o esforço não foi em vão» e que se assistiu «a uma progressiva mudança de mentalidades». Bispos na linha da frente O trabalho pioneiro da LOC teve ecos anos mais tarde com a publicação da “Nota pastoral sobre o trabalho infantil”, pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Preocupados com este assunto, os bispos portugueses referiam em 1993 que se tratava de «um fenómeno difícil de delimitar, quantificar e fiscalizar », porque tinha «a cumplicidade de patrões com poucos escrúpulos e de pais com recursos insuficientes ». Os prelados lembravam que o trabalho infantil não se explicava apenas pela «ganância do lucro fácil e a deficiente formação e instrução dos pais», mas tinha raízes de «ordem socio-económica». «O baixo nível de desenvolvimento da economia portuguesa e a frágil modernização das empresas, por comparação com as concorrentes estrangeiras », levavam a que se recorresse «ao trabalho de das crianças como forma de assegurar maior competitividade ». No documento, os bispos também associavam o trabalho infantil a «um tipo de economia subterrânea, oculta e paralela, feita por empresários sem formação profissional nem sensibilidade aos princípios morais », e ainda aos pais, que viam «com bons olhos o trabalho dos filhos pequenos » e para os livrarem dos «perigos decorrentes dos tempos livres». Como se disse, a posição da CEP surgiu na sequência da acção de muitas instituições nacionais e internacionais que se interessaram pelo assunto, tal como a Anti-Slavery International, que levantou a questão nas Nações Unidas, em 1989 e 1991, no Grupo de Trabalho sobre Formas Contemporâneas de Escravatura. Para José Maria Costa, «a realidade do trabalho infantil ganhou outros contornos». O dirigente nacional da LOC/ /MTC garante que «ele entra em nossas casas todos os dias sem darmos conta», «através do ecrã da TV, com rostos ternos de crianças umas vezes sorridentes, outras vezes zangadas ou com expressões de cabisbaixo». «Faltam-nos as imagens que estão por trás do ecrã, tal como as horas intermináveis de ensaios, os horários longos, os estúdios sem condições, as altas luminosidades, os textos impostos para decorar, os movimentos programados, as expressões imitadas, as músicas, danças e os gestos», conta o responsável, lamentando que os mais novos tenham que passar por «choros por não conseguirem» e se confrontem com «as ameaças de que são postos de lado porque há quem faça melhor, o stress permanente, a ansiedade, a falta de alimentação adequada e o pouco tempo para os estudos ». José Maria Costa afirma mesmo que o sucesso e a rentabilidade do “trabalho artístico” faz com que «as crianças sejam obrigadas a permanecerem dezenas de horas, acompanhadas de pais ou familiares, em filas intermináveis, expostas ao calor, vento, chuva, frio, par ver se conseguem um lugar de actor ou interveniente numa novela ou um talkshow ». «Para muitos pais, ver os filhos na TV é motivo de orgulho e de prestigio. No entanto, quando os filhos se tornam adultos, verifica-se que muitos deles não conseguiram terminar os estudos, outros estão simplesmente doentes e são muito poucos aqueles que são escolhidos para continuarem com a carreira de actores», afiança o dirigente nacional da LOC/MTC, remetendo porém o assunto para o último estudo sobre o trabalho infantil em Portugal, realizado em 2001. O grupo de trabalho do SIETI – Sistema de Informação Estatística sobre Trabalho Infantil conclui nesse ano que 4,2 por cento dos menores são atingidos pelo flagelo, o que, de acordo com o estudo “Caracterização social dos agregados familiares portugueses com menores em idade escolar”, demonstra um ligeiro aumento do trabalho infantil em comparação com 1998. O colóquio o dia 15 de Dezembro é, na verdade, uma oportunidade para homenagear os “heróis” que, ao longo das últimas duas décadas, assumiram esta causa. No dia 16, a CNASTI vai realizar a Tomada de Posse dos titulares dos Órgãos Sociais para o triénio 2006/2008, cuja eleição decorreu no passado dia 25 de Novembro, no Porto. Neste mesmo dia será apresentado o seu Plano de Acção, para o ano 2007.

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